T THESE DE COaCKUSO DO Dr. ílamir.r.&íi , i <-.< íhi i?i!va NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE NLM DÜSS^bM b SURGEON GENERAL'S OFFICE LIBRARY Section__________________.........____ Form 113c v_ "^ lüCT? U.S. GOVERNMENT PRINTING OFFICE: 1934 NLM005549646 ARM >' \ M E DICAL \ [ JAN :- 8 1935 1 L. t .v ! . / e ypr ír^rfew Jcu^/m .^ (Jf■ lUACÜ \aCCU> J^ C ^ ( 11 v C ^ ^/x tVQA_ C t CLuf f-> CONCURSO PARA A CADEIRA DE PATHOLOGIA EXTERNA THESE APRESENTADA A' FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA PELO Opposiíor da Secrão de Sciencias Cirúrgicas Olme rationelle Basis ist der Artz ein Pfuscher. ( Caxstatt ) BAHIA IMPRENSA ECONÔMICA oo — Rua dos Algibebes — 22 1874 VVO SS"8fe + 107 d FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA DIRECTOR O Exm. Sr. Conselheiro Dr. ANTÔNIO JANUÁRIO DE FARIA VICE-DIRECTOR O Exm. Sr. Conselheiro Dr. VICENTE FERREIRA DE MAGALHÃES LENTES PROPRIETÁRIOS 1° Anno ) Phvsica ern geral, e particularmente Cons. Vicente Ferreira de Magalhães . j em guas ap° licações & medicina. Francisco Rodrigues da Silva ....... Chimica e niineralogia. Barão de Itapoan................ Anatomia descriptiva. t 2° Anno Antônio de Corqueira Pinto........ Chimica orgânica. Jeronymo Sodré Pereira.......... Physiologia. Antônio Mariano do Bomflm....... Botânica e Zoologia. Barão de Itapoan ...,..,......... Repetição de Anatomia doscriptiva. 3o Anno Cons. Elias José Pedroza.......... Anatomia geral e Pathologica. José de Góes Siqueira............ Pathologia geral. Jcronymo Sodré Pereira.......... Continuação de Physiologia. 4o Anno ........................... Pathologia externa. Dcmetrio Cyriaco Tourinho........ Pathologia interna -,,,,.,,. 0 • ) Partos, moléstias de mulheres pejadas Cons. Mathias Moreira Sampaio..... j e de'meninos receninascidos. 5o Anno Demetrio Cyriaco Tourinho . . ,..... Continuação de Pathologia interna. Luiz Alvares dos Santos.......... Matéria medica e therapeutica. x , . . , „ .. ) Anatomia topographica, Medicina José Antônio de Freitas...........J operatoria e Apparelhos. 6o Anno Rozendo Aprigio Peixeira Guimarães. . Pharmacia. Salustiano Ferreira Souto......... Medicina legal. Domingos Rodrigues Seixas........ Hygiene, e Historia da Medicina. José Affonso Paraizo de Moura...... Clinica externa, do 3o c 4o anno. Antônio Januário de Faria......... Clinica interna, do 5o e 0° anno. OPPOSITORES Ignaclo José da Cunha............ \ Pedro Ribeiro d'Araújo............ I José Ignacio de Barros Piuientel..... > Secrão Aeccssoria. Virgílio Climaco Damazio.......... \ José Alves de Mello.............. / Domingos Carlos da Silva.........\ Augusto Gonçalves Martins........I Antônio Pacifico Pereira..........> Secção Cirurgica. Alexandre Affonso de Carvalho.....\ José Pedro de Souza Braga........ ) Claudemiro Augusto de Moraes Calda». , Ramiro Affonso Monteiro.......... j Egas Muniz d'Aragão............ > Secção Medica. Manuel Joaquim Saraiva..........\ José Luiz de Almeida Couto........ J SECRETARIO O Sií. Dl). CINCINNATO PINTO DA SILVA OFFICIAL DA SECRETARIA O Sn. Dlt. THOMAZ D'AQUINO GASPAR A Faculdade não approva nem reprova as opiniões emittidas nas theses que lhe são apresentadas. CONCURRENTES O AUTOR E OS SRS. DRS. ANTÔNIO PACIFICO PEREIRA AUGUSTO GONSALVES MARTINS ALEXANDRE AFFONSO DE CARVALHO ANTES DO ASSUMPTO A natureza do trabalho que empreliendo, as suas acanhadas e estreitas dimensões, não permittiam certamente a preferencia do ponto escolhido para esta these. Ponderosas razões me deviam ter desvia- do de tão afanosa, difncil e até temerária tarefa. Antes de tudo, porque se faz precisa uma forte tensão de espirito, que demanda grandes fadigas, e immensa somma de co- nhecimentos, procurados em sciencia di- versa ; depois, porque é uma grande e triste verdade na vida social, e igualmente na vida do homem de lettras, que nem sem- pre os louros e os triumfos aguardam o me- recimento do trabalho e das aptidões culti- II vadas. A matéria, porém, é em seu fundo seductora, e máo grado a certeza de exte- nuarem-se-me as forças para as provas que se devem seguir, das quaes é esta o prólogo, não rne poucle a força desta convicção fa- zer fugir á tão tentador ensejo de tornar pa- tentes as minhas idéias, em relação a um assumpto tão desprezado e injustamente julgado por nossa litteratura — de modo a só servir, nestes últimos tempos, para ponto de proposições de theses. No intuito de rehabilitar questões de or- dem tão elevada, que reflectem quasi intei- ro o immenso quadro das moléstias cirúr- gicas, e recommendar o seu exame ás precli- lecções dos alumnos e dos jovens médicos — ávidos de pratica e de conhecimentos precisos — é que vou dedicar algumas horas de meditações scientificas, em frente ás no- tas e apontamentos que resumem as mi- nhas reminiscencias clinicas. Muito ha, entretanto, a fazer-se na reali- sação deste plano, essencialmente pratico, de estudo. A matéria esconde em numero- sas dobras os mais difficeis problemas da Pathologia moderna; problemas, dos quaes muitos ainda se acham confiados ao estudo e ás luzes da observação, e poucos, feliz- mente, ainda obscuros, como sempre são os III últimos horisontes de nossas mais auda- ciosas investigações. A illustrada Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, confiando ás habili- tações dos candidatos, que se apresentam á cadeira de Pathologia externa, o estudo de taes questões, bem pensou nas difficulda- des de resolvel-as, no feliz consórcio das novas ideias, que reinam na sciencia, com a contemplação dos factos palpitantes de interesse, que, não ha muito tempo, tiveram seu termo com a guerra do Pa- raguay. Pensando assim, lembraram-se, porém, os nossos distinctos collegas e mestres das grandes vantagens, colhidas para o ensino, da apreciação e solução dos problemas im- portantes da historia das feridas por armas de fogo, diante dos factos e das observações colligidas naquella longa e proveitosa pra- tica, sem ser preciso tomar de empréstimo os trajes da sciencia estrangeira para ata- viar-se a cirurgia pátria. Implicitamente o grande merecimento de um trabalho similhante se acha ligado á applicação sensata e judiciosa dos conhe- cimentos até o presente adquiridos, em re- lação a estas espécies de lesões, ao estudo dos factos cirúrgicos, que por longos cinco IV annos se offereceram á contemplação dos cirurgiões brazileiros. Assim o ponto offerecido á livre discus- são, além de ser um serviço importante á sciencia, impõe-se como um tributo de pa- triotismo, afim de que não fiquem perdidas para a cirurgia pátria as licções eminente- mente praticas de uma guerra, que, esque- cida pelo exame de sua face scieiitifica, mais tarde será apontada como um simples facto chronologico. De nossa Faculdade, assim como da do Rio de Janeiro, muitos foram os professores, que, em generoso lance de abnegação e de patriotismo, seguiram o exemplo dos bra- vos voluntários, correndo ao campo da hon- ra e da gloria. A importância de seus servi- ços, com quanto não se tivesse mandado apregoar em arauto, foi muito além do que se poderá esperar de sua posição scientifica, e da reputação clinica de que gozavam, abandonando a cadeira do professorado, para se exporem ás vicissitudes, injustiças, perigos e provações de toda a ordem da vida militar. Foram, no emtanto, preciosas as modificações que o corpo profissional con- seguiu introduzir no regimen nosocomial, assim como na pratica da cirurgia e mais teria elle ainda alcançado por suas luzes e V dedicação, se embaraços invencíveis não surgissem diante de suas justas aspirações, ernpecendo-Ihe a acção benéfica. Até o presente, entretanto, nada se escre- veu na Bahia, em relação a um assumpto que tanto se recommenda á benemerencia nacional. As causas desta lacuna nos es- tudos médicos, em geral, são infelizmente de ordem a fazerem recuar a melhor e a mais decidida vontade. Quem 'não conhece as cLifELculdades com que luta quem escreve neste paiz? Conseguintemente, só em trabalho como este, imposto para o justo accesso aoprofes- soraclo, as melhores questões e mais palpi- tantes de interesse podem ser estudadas e discutidas. No Pio de Janeiro não aconteceu o mesmo. Um resumo importante, encerrando as mais curiosas observações, colhidas no serviço cirúrgico da esquadra — deve o paiz á intel- ligencia e illustração do meu amigo Dr. Car- los Frederico, chefe actual do corpo de saúde da Armada. Infelizmente, porém, somenteí tem a sciencia conhecimento dos factos ob- servados no serviço de saúde de nossas for- ças maritimas, constituindo, quasi inteiro, todo o cabedal de nossa cirurgia militar, relativamente ainda pobre, diante do muito VI que podia ter adquirido das observações numerosíssimas do exercito, e das luzes de seu distincto corpo de saúde, onde servi- ram alguns cirurgiões, nos quaes desvane- ce-se o paiz de reconhecer o maior mtrito profissional. Em procura de outros traba- lhos, que me suavisassem a penosa tarefa que tomei á hombros, nada mais de notável encontrei, a não serem as observações que formam a base da importante estatística do Sr. Dr. Fortes de Bustamante, que mais proveitosas seriam, se ao hábil cirurgião sobrasse tempo para um estudo mais apro- fundado dos factos, ei ev ando-o ao nivel dos conhecimentos modernos. O que resta, depois disto, é quasi total- mente destituído de importância, extrain- do de observações e estudos da cirurgia estrangeira, e sem o menor cunho de origi- nalidade. Assim, comprehenderá facilmente o leitor que nesta ordem de pesquizas o campo não se acha ainda desbravado, principalmente no tocante ás applicações úteis, e que corro risco de ensangüentar as mãos nos muitos espinhos que terei necessidade de afastar do caminho que me proponho a seguir. A' vista da vastidão do assumpto, não me desvanecendo de deixar escripto umTra- VIB tado em logar de uma These, não poderei, no correr deste trabalho, occupar-me de um grande numero de questões de medío- cre importância, quasi universalmente aceitas, e de exigua utilidade á sciencia e ao paiz, que aspiram o progresso e o aperfei- çoamento. Em relação a ellas, o leitor re- correrá com vantagem aos numerosos li- vros, escriptos em todas as linguas, e enri- quecidos de demonstrações as mais minu- ciosas. O alvo do meu trabalho não pode, e nem deve ser este. Diante dos pontos mais importantes e pouco esclarecidos da historia das feridas por armas de fogo, outro desideratum não posso ter, senão estudal-os por suas nu- merosas faces, procurando interpretai' as diversas manifestações que apresentam. Para attingir este fim, o ponto de partida, que naturalmente se me impõe ao espirito, é a larga base de observação, adquirida na pratica de hospitaes civis e militares. Foram numerosos e variados os casos que tive occasião de observar no Paraguay, e que por mim foram cuidados. Avultou em minhas mãos o numero de operações de toda espécie, tendentes a satisfazerem ás VIII múltiplas indicações das feridas de guerra. Foi então que reconheci a differença enorme que separa os serviços nosocomiaes, nos tempos regulares, da pratica dos hospitaes fixos de um exercito em operações, princi- palmente após as grandes batalhas. Infelizmente, taes differenças não se limi- tam ao pesado e triste trabalho do cirur- gião, que muitas vezes passa noites intei- ras, á luz amortecida de um candieiro, fa- zendo as mais difliceis operações e os mais fatigantes curativos, em um numero de fe- ridos sempre superior ao tempo e ás suas forças. Tantas fadigas seriam perfeitamente recompensadas, se o resultado de tão pe- nosos trabalhos fossem os que ordinaria- mente se observam na pratica dos tem- pos de paz. Então é que se torna patente a grande differença, em relação ao êxito das opera- ções, que abrem as portas aos mais graves accidentes com tal intensidade, que tor- nam-se um verdadeiro martyrio para o cirurgião. Sem querer ir mais longe nesta ordem de considerações, que encontrarão logar apropriado nesta these para serem de- senvolvidas, cabe-me, antes mesmo de expol-o á dissecção dos meus adversa- IX rios, confessar as lacunas deste trabalho, escripto quasi ao correr da penna. Não pretendo as glorias de haver espan- cado as trevas, que envolvem certos pontos de explicação difficil na sciencia. Em re- lação a estes, limito-me a offerecer modes- tamente a exame as minhas opiniões, pro- curando assental-as sempre em bases o mais possível praticas. As questões inhe- rentes ao tratamento das feridas de guerra, de ordem tão elevada e prenhes de beneli- cios para a humanidade em geral, e de van- tagens bem pronunciadas para a adminis- tração em particular — são mais detida- mente examinadas neste trabalho. Para fa- cilitar a extracção das balas, que tão facil- mente se esquivam á apprehensão pelos ins- trumentos mais engenhosos, actualmente conhecidos, eu penso haver muito contri- buído no tocante ao desprendimento des- tes projectis, principalmente em condições de solida fixação nos tecidos, lembran- do o emprego do galvano-caustico ther- mico. Meios de reconhecer a existência de cor- pos extranhos, em uma ferida, a sciencia os possue modernamente da maior sen- sibilidade. O que se tornava necessário era preparar as condições de successo para o emprego destes instrumentos, que tantas vezes falham na pratica. O plano de estudo adoptado nesta these se acha, portanto, perfeitamente accommo- dado a matéria da cadeira, á que propo- nho-me. Com quanto esta á primeira vista pareça ser simplesmente theorica, em seu fundo avultara os trabalhos práticos. A Pathologia externa, sendo a base indis- pensável para os estudos clínicos, é a seu turno a synthese de todos os conhecimen- tos cirúrgicos. Não é em vão, portanto, que os estudos práticos se impõem no presente século, como o maior clesideratum da sciencia contemporânea. Os seus bellos resultados sentem-se, já hoje, em nossas Faculdades, onde as anti- gas predilecções teem experimentado uma salutar diversão. Attestam-n'os o progresso immenso do ensino medico, e de nossos trabalhos pro- fissionaes, que, por sua feição eminente- mente pratica, já são conhecidos e devida- mente considerados na Europa. Estas vantagens que o paiz tem colhido, quanto ao ensino e á pratica das sciencias médicas, longe de o desvanecerem e lison- gearem a sua vaidade, impõem-lhe o dever XI de realisar medidas tendentes a alargar mais o circulo de nossos conhecimentos es- peciaes. Não pretendo occupar-me do regi- men do ensino em geral, que exige as maio- res modificações, ou talvez completa sub- stituição, porque isto nada vem ao caso; sou, no emtanto, obrigado a algumas consi- derações em favor da instrucção dos corpos de saúde de nossas forças de terra e de mar. Como se sabe, não existe entre nós uma eschola de medicina militar. Aquelles que se destinam á esta nobre carreira, regra geral, não fazem disto um sacerdócio, não tanto pelas vantagens que lhes são offereci- das, como pelo rigor das leis militares, que de frente se incompatibilisa com as liber- dades da vida deixada de estudantes. Filhos todos de escholas, onde apenas se recebe o ensino pratico civil, em que fontes mutuariam as verdadeiras aptidões os meios de apparecerem? Necessariamente na pratica das epochás anormaes, onde, ao contrario do aprendiza- do, se fazem necessárias habilitações espe- ciaes. Entretanto, se acham facilmente ao nosso alcance os meios de dar-se aos alumnos, que se destinam á carreira militar, a indispen- sável e apropriada instrucção. XII Havendo na sede mesma de nossas Facul- dade de Medicina hospitaes de marinha e militar, bem se poderia tornal-os úteis ao ensino medico das mesmas Faculdades. Para isto bastava serem destinadas em cada um destes hospitaes duas enfermarias, uma de cirurgia e outra de medicina, para a pratica de alguns professores das Facul- dades. Nas enfermarias de cirurgia seriam vantaj osament e aproveitados os professores de Operações e de Pathologia externa, que d'outra sorte jamais terão occasião cie mos- trar a seus alumnos as necessárias appli- cações cios conhecimentos e processos, que lhes são ensinados. Para as enfermarias de Medicina os professores de Pathologia in- terna e de Hygiene se fazem lembrados, com a maior vantagem para o estudo das moléstias internas e epidemias, á que pa- gam os exércitos tão largo tributo, e para a generalisação dos conhecimentos de hy- giene militar. Faço votos para que os poderes compe- tentes acolham favoravelmente esta excel- lente medida, que será mais uni fiorão de gloria para quem já de tantos benefícios tem dotado as Faculdades de Medicina do Império, e a instrucção em geral. ( * ) ( * ) Refiro-me ao Exm. Sr. Ministro da Império. xin Agora algumas considerações finaes, diri- gidas ao nobre jury deste concurso. Os meus clistinctos mestres e collegas, abalisados na confecção desta espécie de trabalhos scientificos, reconhecem que não é possivel attingir-se á perfeição, em um escripto imposto dentro de tão estreito prazo. Esta these deve ressentir-se de algumas imperfeições litterarias; no quanto res- peita, porém, á parte profissional desva- neço-me de tel-a collocado ao nivel dos conhecimentos médicos mais recentes, e da pratica da cirurgia moderna dos dois con- tinentes. Sacrifiquei, muito intencionalmente, neste trabalho — o luxo da erudicção — á clareza, suavidade e concisão do estylo, á pureza das fontes de estudo, á propriedade da linguagem, ao nexo das ideias e dos factos, e á probidade scientifica emfim. De que servem, porventura, á intelligen- cia do leitor, a longa enumeração de obras consultadas, as numerosas e repetidas cita- ções que se atropellam, senão de simples apparato de sciencia, que hoje já não é mais moeda corrente entre nós ? É preciso que sejam convenientemente comprehendidas as sabias tendências da XIV Medicina hodierna, que se apropria da Ín- dole nimiamente positiva do século, o qual só reconhece como sabedoria na sciencia da organisação humana os resultados da obser- vação rigorosa e exacta cios factos. ESTUDO DAS PRINCIPAES QUESTÕES RELATIVAS AS FERIDAS POR ARMAS DE FOGO INTRODUCÇÃO (jKkTA pratica da cirurgia militar, são numerosos ^1? os problemas que se levantam ao plano da attenção do homem da arte, e que se impõem por sua importância e interesse. Este sempre crescente, correndo meças com os progressos quotidianos e incessantes da cirurgia, sobe de ponto, quando se procura investigar e elucidar duvidas tendentes a obscurecerem as applicações praticas úteis, que, em toda e qualquer contingência, devem ser o princi- pal se não o único alvo das vistas e pesquizas scientificas. E' de certo para melhor e mais exactamente attingir este importante desideratum que a scien- —*®o 2 «©•<- cia moderna, pondo em jogo todos os meios precio- sos de investigação ao seu alcance, entra previa- mente, com o maior cuidado e minudencia, no exa- me das questões subsidiárias, para as quaes põe em justa contribuição grande numero de ramos dos conhecimentos médicos, exigindo ao mesmo tempo uma erudição cirúrgica solida e variada. E' assim que antes de occupar-me das múlti- plas e differentes questões, concernentes ao trata- mento das feridas por armas de fogo, torna-se de intuitiva necessidade passar um olhar rápido sobre assumptos que lhe são elementares, taes como : o estudo da natureza desta espécie de le- sões traumáticas, o aperfeiçoamento dos instrumen- tos de guerra, empregados modernamente, e exame de seus projectis, os effeitos por estes produzidos sobre o corpo humano em relação aos diversos teci- dos orgânicos, a apreciação da symptomatologia por que se revelam similhantes lesões, as compli- cações que as podem acompanhar, os accidentes a que estão sujeitos, e bem assim o que se refere especialmente ás pesquizas diagnosticas e á gravi- dade que podem offerecer, segundo as partes offen- didas, a importância e a extensão dos estragos. Comprehender-se-ha facilmente, por este incom- pleto enunciado das diversas questões relativas á historia das feridas por armas de fogo, o qual fica —>«©° 3 «>©■<— sujeito ainda á addicções, segundo as exigências do assumpto — as vantagens que um tal plano de estudo, convenientemente desenvolvido, pode oífe- recer ao paiz, aconselhando-lhe o melhoramento, dentro do mais curto prazo possível, de nosso ar- mamento, e o desenvolvimento das habilitações do exercito, cuja instrucção, nas condições actuaes da guerra, tal como é ella modernamente levada pelos paizes mais adiantados, torna-se tão indis- pensável quanto variada, e mais do que tudo emi- nentemente pratica. ^^ -V> PRIMEIRA PARTE I NATUREZA DAS FERIDAS POR ARMAS DE FOGO ;jTjJ? ste gênero de lesões, devidas em maior escala çfeíá guerra, apezar de ser de longa data observa- do, só modernamente tem attingido, em seu estudo, o grau de adiantamento que fora para desejar-se. São consideradas neste grupo tão numeroso de feridas—as soluções de continuidade dos tecidos da economia, produzidas pela acção directa ou indi- recta de corpos movidos pela deflagração da pól- vora . Neste immenso quadro de lesões traumáticas se acham portanto confundidas, em razão de suas causas e até certo ponto de seus caracteres anatô- micos, feridas diversas que teem logar no campo —;*©<> 6 °©*i— de batalha, cujo estudo pertence á cirurgia militar, e lesões outras que podem ser devidas ás explosões de minas, aos sinistros tão freqüentes em certas profissões, como a de cavouqueiro, e aos incên- dios em estabelecimentos industriaes de matérias explosivas, e que são entre nós freqüentes nas officinas de fogueteiro. No primeiro caso, os corpos arremessados pelos gazes desenvolvidos em virtude da combustão da pólvora são ordinariamente balas, ou fragmentos metallicos que dellas resultam ; nos demais casos os projectis variam ao infinito, e são de tantas espécies, quantas são as dos corpos ao alcance da violência impulsora. E' assim que nos cavouqueiros muitas vezes se encontram, em suas multiplicadas lesões, fragmen- tos de pedra, e sempre grãos de pólvora não quei- mados; nos fogueteiros hastilhas de madeiras, utensilios usados na profissão, pedaços de lata, po- dendo ser até o próprio corpo do paciente arre- messado á distancia. Depois que foram conhecidas as armas de fogo, e vulgarisada a sua applicação á arte da guerra, aos assassinatos, aos duellos e á defeza do homem contra os animaes, o curativo mais difíicil e mais complicado das feridas por ellas produzidas, va- riando naturalmente de condições das que eram ->"©» 7 <=©>+ até então conhecidas, por um certo accrescimo de intensidade da acção vulnerante—deu logar a que se suppuzesse, quasi geralmente, envenenadas as diversas lesões devidas aos projectis movidos pela deflagração da pólvora. Este modo de comprehender os caracteres mór- bidos, tão altamente proclamado por Alphonse Ferri, e que ainda hoje encontra adeptos entre ci- rurgiões em extremo systematicos, não compor- tava o mais rápido e superficial exame. Bastava saber-se que as diversas substancias de que são compostas as balas, de uso quotidiano nos misteres industriaes, não contém principio algum tóxico de fácil inoculação nas feridas, e muito menos se mostram susceptíveis de adqui- rirem propriedades, que tornem o seu contacto nocivo aos tecidos do organismo. Ambrosio Pare e, já antes deste celebre cirur- gião, Bartholomeus Maggius, demonstraram a fraca consistência de similhante doutrina sobre a natu- reza das feridas por armas de fogo, mostrando que as tendências pouco favoráveis destas lesões para a cura — provinha da grande contusão e dilacera- ção, em que ficavam os tecidos que eram atraves- sados pelos projectis. Depois que o espirito das revoluções conseguiu direito de domicilio em alguns paizes essencial-. —í«©3 8 "©•<- mente turbulentos, abusando os povos dos inven- tos os mais civilisadores para satisfação de suas paixões sanguinárias, a inspecção e o tratamento destas feridas tornando-se quasi diários, começou- se a julgal-as de um modo mais vantajoso para a pratica e mais accommoclado á verdade anatômica. Reconheceu-se então que nada havia de tóxico nessas lesões, e que as similhanças apontadas com as feridas envenenadas não tinham razão de ser, podendo até realisar-se algumas vezes a cicatrisa- ção por primeira intenção. Casos taes são mencio- nados pelo professor Gosselin, em suas Lições de Clinica Cirúrgica, e por seu interno Mr. Berger na União Medica ; e não são elles novidade na sciencia, porquanto idênticos, já antes disto, teem sido observados em todas as épocas por S. Cooper, Larrey, Billroth e muitos outros cirurgiões. Mas então qual a razão á accusar-se nos casos de cura difíicil e morosa," embaraçada por accidentes de toda espécie, e se distinguindo pela proprie- dade especial ás cicatrizes, deixadas após longos cuidados, de abrirem-se ainda muitos annos depois de terminado o tratamento ? Qual será o quid ignotum que communica a taes afíecções este raro privilegio, que só se encontra nas feridas envenenadas, de tumefazer-se o oro-ão ou o membro, tornarem-se sensíveis as velhas ei- -^>» 9 ci- catrizes e exulcerarem ao menor contacto, á uma causa qualquer irritante local ou geral, e tantas vezes sem motivo justificado ? A' extrema contusão das partes molles e ás le- sões do esqueleto, devidas á acção dos projectis, animados de uma grande quantidade de movimento — dizem uns; á combinação de um prévio esma- gamento — entendem outros; emfim, á complica- ção inevitável da queimadura, de cuja natureza participam as feridas por armas de fogo — pensa a maior parte. Mas o que poderá explicar a contusão só por si, ou mesmo precedida de esmagamento por pressão directa, ou no sentido da translação e rotação das balas, mais do que a perda de vitalidade para uma certa espessura de partes molles, constituidas por- tanto em fôrma de eschara, e entregues mais tarde á eliminação do organismo ? A mortificação é o resultado ordinário das con- tusões profundas, acompanhadas de traumatismo; porém nem por isso o tratamento das feridas con- tusas se acompanha das duvidas e incertezas, e principalmente do retardamento da cura, como nas lesões d'armas de fogo. Muito ao contrario, as pri- meiras, logo que se despem das partes gangrena- das, cobrem-se de botões carnosos luxuosos, que annunciam a cicatrisação próxima, —i"©° 10 e®*— A pretendida queimadura, invocada para expli- car o caracter e as propriedades inherentes ás fe- ridas por armas de fogo, não daria certamente logar, senão a desorganisação dos tecidos até certa extensão; e ainda a eliminação das partes com- promettidas se imporia, como o resultado que a todo o momento se observa na pratica civil e no- socomial, sem que por isso as cicatrizes, que se succedem a esse gênero de lesão, deixem de ser assás resistentes, espessas e constituídas de um modo definitivo. Demais, longe de ser uma circumstancia desfa- vorável, a cauterisação do canal de uma ferida por projectil de guerra se recommendaria, na opinião de Maisonneuve e de grande numero de práticos de primeira ordem, como o meio preventivo mais certo de impedir a infecção do organismo, á qual, com os melhores fundamentos, se tem ligado ultima- mente a supervenção do maior numero de acci- dentes, observados na marcha do traumatismo em geral. Ninguém, que contemple e reflicta sobre o facto tão simples, e tantas vezes observado, da deflagra- ção da pólvora n'alma de uma bocea de fogo, des- tinada a impellir projectis, de substancia boa ou má conduetora de calorico, comprehenderá a queima- dura, que ainda hoje, com as pesquizas e expe- —!*®o 11 o©*— riencias de Busch, se tem querido constituir com- panheira constante das feridas por armas de fogo. Resulta destas experiências e pesquizas, até certo ponto confirmadas pela opinião de Socin, que uma bala de chumbo sendo interrompida em seu curso por uma lamina de ferro, contra a qual se embate, funde-se de momento, deixando sobre o ponto percutido uma verdadeira estrella brilhante, for- mada de riscas e gottas solidificadas do metal derretido. Sem, por emquanto, declarar-me acerca destas importantes investigações, cumpre que se determine a origem possível de calorico em taes condições. A deflagração da pólvora dá logar ao despren- dimento de gazes (azote e oxido de carbono) n'um volume maior de 400 vezes o da pólvora quei- mada. Em virtude da força expansiva destes gazes, os projectis introduzidos na bocca de fogo adqui- rem uma velocidade, que corresponde á força de 400,000 athmospheras. Acompanhará, por ventura, o desprendimento de calorico a proporção da for- mação de gazes e a celeridade dos projectis? Não será fácil demonstrar-se um tão grande augmento de calor, e ainda na hypothese de dar- se, deverá elle transmittir-se antes de tudo ao metal (optimo conductor) de que é fabricada a arma, por numerosos pontos de contacto, depois ao projectil —><§>o 12 c©K— (conductor de importância incerta) por seu conta- cto n'uma superfície muito limitada com a sub- stancia explosiva, e ao ar athmospherico, emfim, por pontos ainda mais numerosos. Desta apreciação, em perfeito accordo com as leis physicas, decorre que a bala é projectada com uma temperatura muito menor do que a d'arma de fogo, a qual, entretanto, é de ordinário apenas aquecida, e jamais impede que novos tiros se succedam. Assim estas feridas não participam, como se pretende, da natureza da queimadura, a me- nos que o calor adquirido pelo projectil se desen- volva no ponto mesmo de contacto da bala com uma superfície bastante resistente, para amor- tecer a velocidade de que vai ella animada. O Dr. Küster propende a acreditar nesta fonte de producção de calorico, estabelecendo como uma lei physica que — toda vez que um projectil, animado de grande velocidade, encontra um emba- raço á sua carreira, parte desta velocidade se de- compõe em calorico, que é capaz de aquecer o mesmo projectil. Em relação ás balas de chumbo, tal producção de calor diminue a cohesão desta substancia, o que favorece a deformação e divisão dos projectis. Em algumas experiências por mim emprehen- -*@, 13 eli- didas, no sentido de verificar as pesquizas do dis- tincto medico do Hospital-Augusta, em Berlim, não tive a fortuna de obter os mesmos resultados por elle mencionados. Nestas investigações con- venci-me, ao contrario, de que o calor necessário para fundir o chumbo, ou aquecel-o até perder a sua força de cohesão, deve ser tão intenso que os efíeitos de cauterisação dos tecidos, após os tiros e em quaesquer condições de resistência dos planos ósseos e fibrosos, não passam de simples conce- pções theoricas. Si assim não fosse, de certo que se não poderia atravessar um plano muitas vezes resistente, e sempre as partes molles do organismo, com uma simples bala de cera, capaz de amollecer e acha- tar-se pelo calor dos dedos. Além disto, as expe- riências de Schádel, de Heidelberg, que não são mais do que repetição das de Ambrosio Pare, con- sistindo em uma descarga de projectis sobre saccos de pólvora, collocados em uma certa distancia, demonstram que as balas de nenhuma sorte se apoderam de calor; pois que em nenhuma dessas experiências a pólvora se inflammou, apezar de haverem sido despedaçados todos os saccos. Reconhecida desfarte a improficuidade das cau- sas apontadas para explicarem a Índole e tenden- ias especiaes das feridas por armas de fogo, o que ~x®° 14 °©«í- resta para a comprehensão das propriedades inhe- rentes a taeslesões ? O conhecimento, entretanto, das condições de que se derivam taes propriedades, de qualquer ordem que sejam — mecânicas ou anatômicas — a sciencia deve aos estudos hodiernos, convindo ser justamente considerado, porque sobre elle se firma o juizo clinico. Não nutro pretenções de innovar em matéria que tanto tem sido debatida, repisando o terreno, onde ainda se descobrem tantas pegadas illustres. Cabe-me, porém, dizer o que penso em relação á matéria, que é de prima importância no estudo das feridas por armas de fogo. O ponto de partida de minha apreciação é o conhecimento da força que impelle os projectis, de sua quantidade de movimento, e das evoluções por elles realisadas em sua trajectoria. De todas estas circumstancias resulta, para a applicação do agente vulnerante sobre os tecidos da economia, um modo especial de actuar que terá logar não mais em um só sentido, como nas feridas contusas, por esmaga- mento, etc, porém em différentes direcções ao mesmo tempo. A acção supportada pelo organis- mo não será então a simples deformação ou des- truição dos elementos dos tecidos no ponto mesmo lesado ; porém alterações que se repercutem mais ->©o 15 «©•<— ao longe, em uma zona que nem sempre poderá ser perfeitamente limitada. Taes alterações, quando não fossem demonstra- das pelo microscópio, a razão e o bom senso scien- tifico facilmente as preveriam. Elias não podem ser as mesmas nos diversos pontos de um raio, que partisse do centro da lesão, dirigindo-se para as partes circumvizinhas. Os tecidos mais próximos ao projectil se desor- ganizam, seus elementos perdem as relações nor- maes, e se deformam, a ponto de extinguir-se nelles a vitalidade. D'ahi resulta uma verdadeira eschara, que será eliminada, á medida que a sup- puração se desenvolva, e logo que os fracos liames que prendem-na ao resto da economia, pelo phe- nomeno physio-pathologico, sejam completamente interrompidos. As zonas periphericas, que não ficaram priva- das de vitalidade, porém que sofíreram também alterações anatômicas de certa intensidade, na razão directa destas modificações intimas — recu- peram as suas propriedades funccionaes, suspensas pelo facto da commorão nervosa da parte. Restabelecida a vitalidade dos tecidos, não se segue que as propriedades nutritivas e formado- ras dos elementos figurados tenham voltado ao seu typo physiologico preexistente. As tendências -H®° 16 °@x- formadoras retrogradam ou se desvirtuam, tendo logar no piimeiro caso a regressão gordurosa, e no segundo neoplasias sob a forma de infiltrações. São estas, ordinariamente, as alterações mór- bidas, que os práticos denominam, em suas au- tópsias, degeneração lardacea na sede das feridas, principalmente em derredór dos callos das fra- cturas por armas de fogo, e na vizinhança das fen- das ósseas. Estas metamorphoses de tecidos são encontra- das sempre, pode-se assim dizer, nas amputações e resecções tardias, sendo muito certamente devido á sua influencia que a ultima d'estas operações, na pratica dos hospitaes militares, tantas vezes desmente as vantagens incOLtestaveis, que lhe assigna a pratica dos hospitaes civis. Em conclusão, resumirei nas seguintes propo- sições o que penso em relaçlo á natureza das feridas por armas de fogo. 1.° — A menos que tenham logar certas circum- stancias muito especiaes e rara 3, as lesões produ- zidas pelas armas de fogo não se complicam de queimaduras, e nem participam da natureza destas lesões. 2.° — A contusão, esmagamento, dilaceração, ou o que mais se queira admiitir para explicar a acção do projectil, não bastam por si ou por seus ->^)o 17 «©*- resukados para determinarem o caracter peculiar á estas feridas. 3.° — Tirado dellas o que pode haver de con- tusas, resta ainda alguma cousa, que as entreteem abertas, que lhes communica propriedades muito particulares, podendo influir de um modo notável sobre a efíicacia dos methodos curativos empre- gados. 4.° — A commoção local, devida á suspensão da actividade nervosa da parte, é o apanágio in- evitável de todas as feridas feitas por projectis, animados de grande movimento. 5.° — A acção vulnerante, inherente ás balas, difíere da dos demais agentes traumáticos, porque é levada sobre os tecidos do organismo em diver- sas direcções ao mesmo tempo, e do modo o mais rápido e violento. 6.° — O facto das metamorphoses de tecido, na sede e nos arredores de taes feridas, é demons- trado constantemente nas autópsias. 7.° — As neoplasias infiltradas nos interstícios dos tecidos circumvizinhos não teem disposição a organizarem-se em tecido definitivo, explicando- se por tal forma o facto da exulceração das cicatrizes. 8.°— Emfim, as feridas por armas de fogo são -y®° 18 «©»<- de uma natureza sui generis, o que deriva-se muito naturalmente das alterações histologicas, que se passam no ponto penetrado pelo projectil e em suas circumvizinhanças. II EXAME DOS PROJECTIS E SUAS VARIEDADES s corpos, de qualquer fôrma e configuração que -c^jy sejam, empregados como munição das armas de fogo, e por ellas ao longe arremessados, podem variar segundo numerosas e variadas circumstan- cias. A principal distincção que se deve entre elles estabelecer, por ser a que mais naturalmente se ofíerece á observação — é relativa especialmente ao seu volume. Assim distinguem-se os projectis em grandes e pequenos. Ao lado destas duas clas- ses, que geralmente são aceitas, eu entendo que sem violentar-se a concisão das classificações — poderia ser collocada uma terceira ordem de proje- ctis, composta das balas de médio volume. Estas ->■©• 20 °®4- fazem parte, ordinariamente, da carga das metra- lhadoras, produzindo estragos muito consideráveis. As grandes boccas de fogo vomitam projectis os mais volumosos, e quasi sempre os mais pesados. Ha modernamente uma admirável variedade de canhões a considerar-se, desde as peças de cam- panha e de montanha, que são apropriadas, por sua mobilidade, para os rápidos movimentos de um corpo de exercito e ainda para o serviço das van- guardas, até as aperfeiçoadas metralhadoras de Grafímg e Albertini, que tão assignalados servi- ços prestaram, encurtando talvez de muitos mezes a duração da guerra franco-prussiana. Em relação a estas armas, que todas se recom- mendam actualmente pelo seu longo curso, e pelos estragos a que dão logar — parece bem pouco res- tar a fazer-se, a menos de se querer transformar o universo em um monstruoso banquete de carne humana. Os progressos, neste gênero de trabalho, teem-se succedido com tamanha rapidez, e são tão notáveis, que pode-se sem receio asseverar que tantas maravilhas e prodígios tem feito neste sé- culo a sciencia de curar, quanto a de matar, gra- ças á acquisição de canhões do maior aperfeiçoa- mento, tal como lhes tem communicado os novos systemas á AVhitworth, AVoolwich, Krupp, Arms_ trong, etc. Estas armas são em geral de uma ex- -;»€><> 21 «©»<- trema precisão, e seriam uma verdadeira maravilha de velocidade, se o systema de St. Robert, larga- mente ensaiado pelos Russos, podesse ser levado á uma realidade. Os projectis empregados são de ferro fundido, podendo ser massiços ou ocos, e estes cheios de pólvora com uma mecha inflammavel, que arde na occasião do tiro para rebentar ao longe nas fileiras inimigas. No primeiro caso se acha a bala de arti- lheria, dotada de prodigiosa violência, capaz de abalar e destruir mesmo as mais sólidas muralhas, as mais bem acabadas fortificações ; no segundo, formam-se centenas de estilhaços, de diversos ta- manhos e configuração, cobrindo como em chuva, muitas vezes , uma fileira inteira de comba- tentes. Nesta primeira classe de projectis ha ainda a mencionarem-se os biscainhos, os projectis arre- messados pelos morteiros, as granadas que são lan- çadas pelos próprios combatentes dentro das fortifi- cações, e as diversas espécies de foguetes, entre os quaes sobresáem, por sua precisão e grande velo- cidade, os foguetes de cauda central de estativa, e os projectis-foguetes Martins. Estes teem sido ex- perimentados por mais de uma vez na linha de tiro do Campo Grande, no Rio de Janeiro, mostrando-se sempre superiores aos demais projectis similhantes, ->©<» 22 °@*<- pela certeza de sua acção e sua explosão na occa- sião desejada. Quando estes diversos projectis, atirados pelas grandes boccas de fogo, attingem as linhas inimi- gas antes de rebentarem, os effeitos produzidos sobre o corpo são muito parecidos aos que se observam com as balas de artilheria. Depois da explosão, um grande numero de pequenos projectis desprendem-se da cápsula que o envolvem, ou são constituídos pelos estilhaços desta mesma cápsula, e são atirados em differentes direcções, quasi do mesmo modo que acontece com a metralha. Esta constitue igualmente a carga de canhões diversos, sendo as peças de campanha as mais das va- zes aproveitadas para metralharem as fileiras inimigas. Presentemente existem boccas de fogo, apropriadas para enviarem similhantes projectis a grandes distancias, produzindo os maiores e mais extensos estragos : são as metralhadoras. Na guerra do Paraguay foram muito numerosos os ferimentos pelos projectis das metralhas, de que os inimigos tanto se aproveitaram com o maior prejuizo de nossos soldados. A nossa posição, sem- pre de assaltantes, favorecia o emprego deste gê- nero de projectis ás guarnições dos reduetos inimi- gos, e foi sempre debaixo de uma chuva de me- tralhas, que os bravos soldados brazileiros es- -><©• 23 •©*- calaram as mais intrincadas e perigosas trin- cheiras. Os Paraguay os preparavam a carga para metra- lharem com pequenas balas de fuzil de toda sorte e tamanho, assim como maiores de cobre, em for- ma de cacho de uva, e fragmentos innumeros de ferro, dos quaes amassava uma bola de diâmetro quasi igual ao da alma do canhão, mediante barro de uma forte cohesão. Foi assim que tive por vezes occasião de extrair balas de metralhas, ainda penetradas desta sub- stancia em suas falhas; e as em cacho de uva offereciam este phenomeno constantemente. Esta circumstancia era sobremodo desfavorável para os feridos, que além das lesões tão pronunciadas e largas, deixadas pelo projectil, ficavam com uma espécie de corpo extranho em suas feridas, de difíicil reconhecimento e de extracção ainda mais incerta. A acção dos projectis explosivos, depois que se desdobram em estilhaços, é mais ou menos pare- cida com a das balas de espingarda. Com ellas facilmente se confundiriam, se não fossem as saliên- cias de sua superfície e a symetria de suas fôr- mas. Em virtude disto as feridas produzidas são or- dinariamente mais irregulares, e quasi sempre mais -!»©« 24 «@K- graves, ainda quando de menores dimensões, pelos accidentes que acompanham-n'as de perto. Os pequenos projectis, empregados nas espin- gardas, pistolas e rewolvers de toda a espécie, são constituídos por balas de chumbo, mais ou menos molle, conforme o fim á que são destinadas. Estes projectis são susceptíveis de produzirem a divisão dos tecidos da economia, desde a borra do chumbo de caça o mais fino até as balas dos fuzis moder- nos, arremessadas por armas raiadas. Entre os extremos se acha o chumbo fino, grosso, os quar- tos de bala, e as balas redondas, taes como antiga- mente eram empregadas, e que encontrei em gran- de numero nas feridas produzidas pelas armas paraguayas. Não tendo em mira tratar do assumpto, senão em relação com a guerra por que acabou de passar o paiz, nada tenho que ver cem outras espécies de projectis, que não sejam os p:ojectis — Chasse- pot, Dreil, Spencer, Mauser, etc, e as balas de que os paraguayos faziam mais uso. Assim ficarão es- tabelecidas duas variedades, a primeira das quaes corresponde ás balas cylindro-c micas ou ogivaes, e a segunda ás balas esphericas. Para aproveitar as vantagens destes numerosos projectis, que, como mais tarde se verá, gozam de propriedades differentes, em relação aos estragos ->^>» 25 c©-<- produzidos, se ofíerece ao estudo e apreciação dos homens competentes um grande numero de espingardas das maiores vantagens na guerra. Estas vantagens modernamente consistem na facilidade de seu manejo, na solidez de construc- ção, e na rapidez com que os tiros se succedem. Quanto á precisão e ao alcance destas espingar- das, não ha razão para preferencias; porquanto todas as armas modernamente usadas são raiadas, e é devido ás estrias traçadas nalma do fuzil o movimento heliçoide, que acompanha o projectil até seu alvo, que pode ser collocado a 800 passos de distancia, quasi com certeza de ser attingido. Experimentadas, como já teem sido as princi- paes espingardas, presentemente propostas para o uso da guerra, variam sobremaneira as predilecções. A America dá preferencia aos fuzis-Spencer, que teem sempre preparada uma carga de oito tiros consecutivos ; a França, desde 1866, tem ar- mado seus exércitos com as espingardas- Ckas- sepot, que em um minuto pode dar 12 tiros ; a Prússia usa de diversos fuzis dos systemas mais aperfeiçoados, como os de Mauser ; mas os que avultam são as espingardas de agulhas ( Zünd- nadel). Depois de um grande numero de ensaios, e um largo estudo sobre a matéria, o nosso governo 4 -x©<> 26 «>©-!- acaba de adoptar uma espingarda typo, á qual propõem-se diversas modificações, no sentido de accommodal-a mais facilmente ao uso de nosso ex- ercito : é o fuzil- Comb Iam. Esta arma é de um manejo muito fácil, não é muito pesada (*), disparando igualmente um gran- de numero de tiros por minuto. Os cartuchos são metallicos, e de uma notável sensibilidade, e jamais falharam em todas as experiências feitas na linha de tiro do Campo Grande. As balas são oblongas, e o seu peso varia de 28 a 47 grammas. O peso dos projectis é muito para considerar-se, segundo o effeito desejado. E' assim que as balas mais pesadas são preferíveis. Elias produ- zem estragos mais consideráveis, porque a intensi- dade de acção dos projectis depende da quantidade de movimento de que são animados, e sendo esta o resultado da multiplicação da massa pela veloci- dade, devem ser os effeitos dos projectis mais pro- nunciados, toda a vez que um dos factores augmen- tar de algumas unidades, conservando-se o outro invariável. (*) Esta qualidade é essencial em relação aos nossos soldados, que, filhos de um clima quente, não dispõem da força muscular necessária para maneja- rem uma arma pesada. É esta uma circumstancia a que cumpre prestar muita consideração, e todas as modificações deverão tender a diminuir o peso das armas portáteis. -x@« 27 «>©*- Esta ultima proposição, entretanto, não é abso- luta ; por quanto conviria para isto que fossem guardadas distancias iguaes. E' em relação á estas condições que o Dr.Küster, já citado no artigo anterior, acaba de fazer estudos os mais importantes, os quaes são publicados no Berliner hlinische Wochenschrift de 13 abril do corrente anno. O distincto pratico demonstrou, em numerosas experiências feitas sobre ani- maes, que a gravidade e a extensão das le- sões produzidas pelos projectis está na razão in- versa da distancia do atirador, e na razão directa da velocidade inicial da bala. Em suas experiên- cias as espingardas de agulha, de Chassepot e de Mauser, em próximas distancias, produziram es- tragos formidáveis, dando logar ao despedaçamento dos ossos e das partes molles em uma considerável extensão. Approximando-se de alguma sorte á opinião de Busch, elle acredita que as balas aquecem-se ba- tendo de encontro á uma superfície resistente, ain- da vivamente animadas de grande velocidade. Esta então se decomporia, no todo ou em parte. dando logar a um desprendimento de calor, capaz de diminuir a cohesão das balas. A natureza do metal se prestava facilmente ao phenomeno, e disto resultariam o achatamento e deformação do -f«©o 28 .©-!— projectil, sua divisão, sendo assim explicado o facto de ficar o projectil na ferida. Tive occasião de convencer-me, igualmente por meio de experiências, de que a opinião do Dr. Küs- ter, em relação ao aquecimento das balas, não tem razão de ser, ractificando dest'arte o que ficou dito no artigo antecedente. Quanto á primeira de suas asseverações, as graves e profundas desordens pro- duzidas pelos projectis modernos, atirados de pe- quena distancia, se acham em perfeito accordo com as leis physicas, tendo sido já apontadas por Huy e Serazin em 1868, na Gazeta Medica de Strasburgo. Uma outra questão que se offerece moderna- mente, disputando de um modo serio a attenção e o estudo dos homens competentes, se refere á consistência das balas. Nada se havia, entretanto, dito até o presente em relação a este assumpto. Parecia definitivamente adoptado, por um accordo geral, que as balas mais duras, taes como as que se preparam de um amálgama de chumbo com o zinco na proporção de 12:1, deveriam ser exactamente aquellas que maiores desordens e alterações produzissem. Esta questão, estudada actualmente n'Allema- nha, mediante as experiências as mais concluden- tes sobre animaes, se acha perfeitamente resolvida -*S° 29 e@*- em sentido contrario do que se pensava. — As balas de chumbo duras atravessam o corpo de um cavallo em seu maior diâmetro, rompendo os teci- dos em um canal de direcção mais ou menos recti- linea, ao passo que as de chumbo molle, atiradas em igual distancia, desviam-se e deformam-se ao primeiro embaraço que encontram, dividindo-se em um certo numero de fragmentos. Dahi resulta não produzirem mais de uma abertura, a de entra- da, e diversos caminhos de direcção centrifuga no interior do corpo. Chega-se á evidencia, em virtude de similhan- tes resultados, de que as balas de chumbo simples são projectis muito para se receiarem pelas feridas que produzem, que são ordinariamente muito gra- ves, quando a espingarda é disparada em próxima distancia, e indicam muitas vezes a amputação nos casos em que é ella possivel. As considerações finaes deste artigo teem a mais justificada applicação á guerra do Paraguay. O dictador Lopez, apezar de dispor de um ex- cellente, numeroso e bem disciplinado exercito, ti- nha-o pessimamente armado. As espingardas que depois dos combates cahiam no poder dos nossos soldados eram do systema o mais grosseiro, e qua- si todas de pederneira da peior espécie. Pelo que nos dizia respeito, o nosso armamento também -*©<» 30 °©^- não nos fazia grande honra como potência militar. O exercito estava, como ainda hoje, armado com fuzil-Minié, modelo de 1842, já ha muito tem- po condemnado. Em relação á grossa artilheria, um e outro lado dispunham de canhões do maior alcance e de extrema precisão. Contribuem a reforçar esta asseveração os dois celebres tiros, que tiveram por alvo o encouraçado Tamandaré, pondo fora de combate 34 praças, e tendo por victima o bravo Mariz e Barros, cujo nome pertence á historia dos feitos gloriosos do Brazil. III ALTERAÇÕES ANATÔMICAS DEVIDAS Á ACÇÃO DOS PROJECTIS rípEND0-SE em justa consideração o volume dos V^ projectis, sua massa, configuração, direcção, movimentos e a velocidade de que vão animados, facilmente serão comprehendidas e aceitas as nu- merosas e variadissimas lesões, que são elles ca- pazes de produzir sobre os nossos tecidos. Algumas vezes é tal o conjuncto de circumstan- cias, que preside á produção de certos ferimentos, que poder-se-hia duvidar da realidade da lesão, se, por ventura, na ausência de vestigios^do lado do invólucro cutâneo, e dos órgãos ao alcance das pesquizas exploradoras, não coincidissem altera- ções funccionaes, denotando profundos e graves ->&• 32 »©■(- desarranjos nos órgãos internos, quasi sempre es- senciaes á vida. Até certo tempo acreditou-se que o ar brusca- mente movido, pela passagem rápida de uma bala de artilheria, era capaz de ser causa de morte. Não obstante a observação dos factos concorrer constantemente a demonstrar a producção de in- significantes ferimentos pela acção de um proje- ctil, que toca em sua passagem uma eminência qualquer do corpo, foram todavia necessárias as importantes pesquizas anatomo-pathologicas do celebre Larrey para firmarem a convicção nos espíritos. Desde então a expressão vento de bala ficou simplesmente representando o choque de um grande projectil, arremessado de encontro ao corpo em uma direção tão oblíqua, que não compromette a pelle, nem lhe deixa sugillações, occasionando, no emtanto, profundas contusões nos órgãos e nos parenchymas, de um desfecho fatal próximo. Fora destas circumstancias, que são sempre raras, a bala de artilheria, do mesmo modo que os grandes projectis ocos, antes de sua explosão, produz despedaçamentos, mutilações e estragos, que justificam a morte instantânea que os segue de perto, quando são elles dirigidos verticalmente contra a cabeça e o tronco. Estas desordens são -x®o 33 o®^- tanto mais pronunciadas, quanto maior é a quan- tidade de movimento de que goza o projectil. Não raras vezes a bala alcança o corpo, como se costuma dizer, morta; então em logar de feridas rasgadas, de retalhos pendentes e mortificados, de ossos esmigalhados, grossos vasos abertos, ner- vos e tendões despedaçados, membros arrancados por sua raiz, ou perfeitamente amputados pelo projectil em sua destruidora passagem — apenas se observa uma mancha ecchymotica, de cor li vida, correspondendo á molleza e depressibilidade dos órgãos subjacentes. Factos similhantes observei eu em grande numero nos hospitaes de sangue, du- rante a campanha do Paraguay. Entre outros, po- rem, guardo na memória o que se deu com o bravo capitão Militão, de Zuavos, que além de dois ferimentos por bala de fuzil na coxa esquerda, e na espadoa direita, apresentava uma pequena ecchy- mose epigastrica, onde a apalpação não despertava dores, mas reconhecia o empastamento dos órgãos profundos. No emtanto, este infeliz podia cami- nhar, e embarcou-se apenas arrimado aos hombros de dois companheiros ; o seu estado geral ainda permittia-lhe fazer a narrativa dos acontecimen- tos do dia. Tendo-o perdido de vista, depois de passadas as primeiras 12 horas, soube mais tarde ter elle succumbido aos mais violentos accidentes, 5 -í-s®<> 31 e©x- devidos á contusão e esmagamento do lobulo es- querdo do fígado, cuja desorganisação a simples apalpação havia previsto. A percussão effectuada pela bala, cuja veloci- dade está prestes a extinguir-se, sobre um membro é ainda capaz de produzir uma fractura simples, tal como produziria qualquer outra violência trau- mática. Factos desta ordem observei eu alguns, que foram seguidos de cura rápida e sem accidentes. Além das lesões mencionadas, ha verdadeiras feridas determinadas por volumosos projectis, que apenas limitam sua acção a levar diante de si a extremidade de alguma saliência, ou uma camada pouco espessa de partes molles. Estas feridas po- dem ser de pequena importância, apezar de se acharem em relações da maior proximidade com órgãos essenciaes á vida. A acção das bombas, granadas, biscainhos, obuzes, foguetes de estativa efoguetcs-prqjectis, dá logar a alterações mais ou menos similhantes ás precedentes. Isto, porém, raramente se observa na pratica, em razão da qualidade explosiva destes grandes projectis, que os transforma, antes de at- tingirem o alvo, em um certo numero de estilhaços, não diversificando então das metralhas, senão pela espécie de projectis secundários, que nestas são muitas vezes balas de fuzil de diversos tamanhos. ->^>o 35 °©>?— São muito freqüentes, em campanha, os feri- mentos por estilhaços de bomba. Estes projectis atravessam com certa facilidade, devida á suas arestas cortantes e ás pontas de que se acham irri- çados, espessas camadas de músculos, alojando-se no meio das partes molles. Então, grande numero de vezes, apezar de seu volume e de sua configura- ção particular, se furtam ás vistas exploradoras as mais perspicazes, e, se o exame é feito quando a parte já se acha tumefeita, as mais minuciosas pes- quizas são Irustâdas. Depois, passados algumas vezes dias e até mezes, é encontrado o projectil na dissecção do membro após a morte, ou em se- guida á amputação, que quasi sempre em taes casos é imposta ao pratico como a medida mais racional. As lesões motivadas por estilhaços de bomba são dignas de attrahir a attenção do cirurgião, já pelo modo de actuar dos projectis, já pela varieda- de que affectam, e muito principalmente pelo grau de gravidade, que nem sempre corresponde á extensão e profundidade da ferida. Lembro-me de ter visto, depois do ataque de Curupaity, um soldado do 11.° de linha, que apre- sentava na face externa do terço inferior da coxa direita uma insignificante solução de continuidade, coroando uma pequena elevação acuminada em fór- -!-^» 36 °©x- ma de tuberculo. Pela simples inspecção não pare- cia a lesão ser motivada por arma de fogo. O pa- ciente arrastava a perna dolorosamente, e insistia em asseverar que na ferida se havia introduzido um corpo extranho. Após minucioso e prolongado exame, descobriu-se uma ponta escura no meio dos tecidos, gozando de mobilidade muito limitada. Pratiquei uma incisão longitudinal, que permit- tiu-me adquirir a convicção de que se tratava de uma saliência metallica, e foi grande a minha sur- presa em ver sahir, mediante uma simples pinça de curativo, um longo fragmento de ferro, de configuração irregular, medindo dois centímetros de comprimento. Perdi completamente de vista o paciente, que não demorou em ser enviado ao hos- pital fixo, ignorando portanto o resultado obtido. Além das difíérentes alterações, que se notam do lado das partes molles, taes como, divisão de músculos, despedaçamento de vasos, secção de tendões — os ossos podem ser igualmente attingi- dos por estes projectis, em toda a sua espessura ou parcialmente, e então as desordens variam de um modo notável. Se se trata dos ossos longos, sobretudo dos que formam o esteio solido dos membros, as fracturas são de ordinário comminutivas, acontecendo al- gumas vezes que uma ou mais esquirolas ponte- -;-©° 37 °@<- agudas, em virtude do movimento communicado, sejam impellidas contra as partes molles, e re- presentem, a seu turno, o papel de outros tantos projectis. Nas extremidades destes ossos, as alterações di- versificam mais ou menos, em razão da disposi- ção anatômica própria das epiphyses. A divisão do osso é mais regular, e as esquirolas mais rara- mente encontradas. Além disto a lesão óssea se circumscreve mais, por não encontrar o proje- ctil tamanha resistência, como a que ofíerece o te- cido compacto das diaphyses. Se se trata de algum caso, em que á marcha do corpo vulnerante se offerecem lâminas ósseas de pouca espessura, não obstante serem constituidas de tecido ósseo de certa densidade, como no craneo, estas lâminas são atravessadas com summa facili- dade, podendo ficar o projectil na massa cerebral, ou em muito estreitas relações com a parede óssea. No primeiro caso a gravidade sobe de ponto ; a massa cerebral pode ser despedaçada, sendo visi- veis alguns fragmentos delia nos bordos mesmos da ferida cutânea ; uma hemorrhagia para dentro da cavidade craniana pode causar a perda do conhe- mento ao ferido, e não raras vezes a morte segue- se de perto. Em certos casos, porém, acontece que os feridos melhoram dos phenomenos primiti- ->*§>* 38 «®*- vos, chegam a levantar-se do leito, parecendo em via de cura á vista do estado favorável da ferida dos tegumentos, que pode attingir mesmo a cica- trização. Este estado só é tranquilisador em apparencia. E' o caso de dizer-se que — o lobo dorme preso no curral. Em uma boa occasião, e sem a intervenção de uma causa qualquer, á que se possa accusar, a cicatriz torna-se dolorosa, levemente tumefeita e verme- lha, abrindo-se afinal para dar sabida a uma insi- gnificante quantidade de liquido soroso, mistu- rado a pus quasi inodoro. Os mais sérios desar- ranjos se revelam do lado do cérebro; os doentes deliram ou succumbem em um estado verdadeira- mente comatoso, e sempre o desenlace de um es- tado tão desesperado se realisa de uma ma- neira tão rápida e decisiva, que não dá logar a qualquer intervenção salvadora. Um caso idêntico se acha perfeitamente des- cripto na Historia medico-cirurgica do Dr. Carlos Frederico, sendo encontrado na autópsia um longo e tortuoso estilhaço da espingarda do próprio indi- víduo, que se havia feito em pedaços na occasião do tiro. Este facto é em si da maior instrucção, não só em relação aos meios de reconhecer-se o proje- ctil, quando alojado na massa cerebral, como no -h®° 39 °©-i- que diz respeito ás alterações consecutivas, que a presença de um corpo estranho, em similhantes condições, é capaz de produzir. Ha, felizmente, para casos taes methodos ope- ratorios, que muito se recommendam, na pratica cirúrgica, pelos brilhantes resultados com que tem sido coroado o seu emprego. Essas operações teem por fim não só a extracção dos projectis, co- mo ainda especialmente a fácil evacuação do pus. Este tende a formar foco dentro da cavidade cra- niana, e a exercer, portanto, a compressão da massa cerebral, que, em contingências similhan- tes, é a causa a mais freqüente da morte. Em Comentes observei um caso de fractura do craneo por arma de fogo, que demonstra plena- mente a vantagem de taes meios operatorios, diante das desordens gravíssimas, que se desenvol- vem nos ferimentos desta região. O soldado a que me refiro recebeu na região de Broca um estilhaço de bomba, que fracturou-lhe o osso. Desde o momento em que se deu o facto, o paciente apresentou aphasia, conservou o conhe- mento por algumas horas, respondendo por signaes ás perguntas que lhe eram feitas. Não tardou, porém, em sobrevir o coma e a lentidão do pulso que chegou a marcar 48 pancadas por minuto. Estes phenomenos me levaram a acreditar na -*@« 40 e^f— existência da compressão cerebral. Esta, entre- tanto, somente poderia reconhecer como causa a accumulação de liquido na cavidade craniana, ou a pressão de alguma esquirola impellida contra a massa encephalica. A primeira hypothese não era plausível, porque o sangue escoava-se com facilidade pela abertura externa; a segunda attingia quasi o maior grau de certeza, tendo-se em attenção a fragilidade da taboa interna do pa- rietal. Em taes contingências não vacillei em re- correr á trepanação, retirando com a rodella óssea uma esquirola maior, que motivava o accidente. Este doente ficou em via de cura. Cumpre, no emtanto, confessar que os feri- mentos penetrantes das diversas cavidades splan- chnicas, sobretudo das que são protegidas por in- vólucros ósseos, dotados ou não de mobilidade, se- guem-se mais freqüentemente á acção das balas de fuzil. Estas offerecem condições as mais favorá- veis para vencerem as grandes resistências, isto é, massa sufficiente debaixo de pequeno volume, su- perfícies mais ou menos lisas e arredondadas, extremidade rematada em ponta, direcção certa e precisa coinmunicada pelas raias d'arma. Só os projectis modernos reúnem taes condi- ções, e é por isso que se lhes attribuem os mais largos e profundos estragos, que demandam grau- —>^)o 41 •©■!— des mutilações, quando são compatíveis com a vida. As desordens e as alterações, produzidas pelas balas modernas, variam segundo a distancia em que é disparada a arma de fogo, e o grau de consis- tência do metal, que entra em sua composição. Estes projectis, arremessados de pequena dis- tancia, penetram os tecidos, esmagando e despe- daçando no sentido heliçoide, em que os enviam as armas raiadas. As partes molles são facilmente atravessadas, parecendo o canal da ferida prati- cado por um trado, e bem assim os ossos, que são quasi constantemente rachados, formando-se no ponto de passagem do projectil um grande numero de esquirolas, das quaes umas podem ser livres e a maior parte adherente. Isto se tem perfeitamente observado, descarre- gando-se o fuzil-Chassepot, Mauser, ou Henrv Martini sobre o ventre de um boi. O projectil atravessa-o com extrema facilidade, indo percutir sobre uma chapa de ferro, que se colloca além do alvo. As excepções á esta regra dependem de circum- stancias, que começam a ser convenientemente julgadas, e são de ordem tão funesta, que para bem da humanidade jamais deverão gozar das honras de regra geral. -;«©o 42 «@x~ Quando as balas são de chumbo puro, não sendo tão duras como as amalgamadas com zinco, logo que chocam a superfície de um osso, principal- mente na direcção obliqua, deformam-se, mudam de direcção ou dividem-se em vários fragmentos. Estes, dispondo de menor quantidade de movi- mento, porque parte da velocidade perde-se de encontro ao osso, derramam-se no seio dos tecidos. Desta circumstancia, nimiamente desfavorável, resulta uma ferida interna de vasta superfície, e a complicação certa de corpos extranhos; pois que os fragmentos do projectil são retidos nos interstí- cios dos tecidos, e conseguintemente se mostra um estado de maior gravidade para o paciente. Nada, porém, é tão curioso, em relação aos effeitos das balas, como as lesões que ellas reali- sam sobre o esqueleto. Quando a bala chega ao osso, dispondo de pouca velocidade, esta, não sendo sufficiente para perfo- ral-o, o corpo extranho pode ser repellido para fora da ferida ou ficar no canal praticado nas partes mol- les . Se a quantidade de movimento é mais consi- derável, ou é coadjuvada pela direcção do projectil, este produz somente fendas, que são longitudinaes nos ossos longos e estrelladas nos chatos. Em ou- tras condições dá-se simplesmente uma fractura transversal do osso, similhante ás que são devidas ->©• 43 <»©»<- aos demais agentes vulnerantes, até em relação á reparação dos tecidos, que tem logar em um prazo de tempo igual. Alguns casos desta natureza offereceram-se á minha observação e á de alguns collegas, durante a campanha do Paraguay, não sendo, porém, sua terminação invariável. E' certo que no maior nu- mero delles o ferimento, em sua essência simples, curou-se facilmente sem a mais leve reacção febril e sem grandes dores, se acompanhando de tumefac- ção moderada. Outras vezes, mau grado as con- dições favoráveis que presidiram o desenvolvi- mento da lesão, a osteo-myelite sobreveiu, e o caracter do ferimento, a principio benigno, adqui- riu um tal cunho de gravidade, que se seguiu da morte pelo apparecimento da septicemia traumá- tica. Nestes casos o foco da fractura acabou por comuiunicar-se com o exterior. Infelizmente, a grande maioria dos feridos offe- rece lesões produzidas pelos projectis, animados de uma quantidade de movimento muito mais considerável. Ha batalhas que se distinguem pelo caracter de maior gravidade das feridas nellas re- cebidas, e disto houve exemplo no combate da ponte de Itosoró, na tomada das Lommas Va- lentinas, etc. Com o uso das balas oblongas e das armas mo- -ks?° 44 <&•<- dernas, raras são as vezes em que o pratico deixa de encontrar feridas complicadas. Na grande maioria dos casos, attingindo o pro- jectil alguma região do corpo, animado de sua maior velocidade, perfora as partes molles, e quando chega ao osso divide-o em um grande nu- mero de esquirolas, que podem, a seu turno, re- presentar o papel de outros tantos projectis, pene- trando na espessura dos tecidos circumvizinhos, ou dando logar a uma ferida em sedenho. Em quasi todos estes casos as fendas ósseas se apresen- tam, como o phenomeno anatomo-pathologico mais freqüente. Em certas condições, e isto se refere igualmente ás balas de médio calibre, o projectil abre atravez dos diversos tecidos um canal rectilineo, de bordos e superfície tão regulares, que parece ter sido pra- ticado pela coroa do trepano. Então o corpo vulne- rante se acha no começo de sua velocidade ini- cial, para a qual a dureza óssea é representada por um algarismo muito insignificante, para servir de embaraço á marcha do projectil. Tenho ainda presente á memória o caso de um soldado, que se achava na enfermaria a cargo de um distincto collega. O seu ferimento tinha por sede o terço superior do braço direito, e era o canal da ferida tão regular e rectilineo, que via-se per- -*©<> 45 <,<§><- feitamente de uma para outra face do membro. Era caso para desarticulação scapulo-humeral, opera- ção que foi por mim immediatamente praticada. (*) Nos ossos esponjosos este phenomeno é também freqüentes vezes observado, e em tudo mais ou menos parecido. Muitas outras variedades de lesões ósseas se en- contram na pratica, taes como a resecção parcial do osso realisada pela bala, que leva diante de si uma elevação ou uma eminência, a penetração so- mente de metade da espessura do osso, cahindo o projectil dentro do canal medullar, a fractura da taboa interna do craneo, conservando-se intacta a externa, a lesão óssea que se apresenta no ponto diametralmente opposto ao que foi percutido pelo projectil, e finalmente o seu encravamento na es- pessura do osso, d'onde difficilmente pode ser elle extrahido. As alterações experimentadas pelas artérias não differem notavelmente da dos demais tecidos. Elias consistem, quasi sempre, na divisão, dilaceração, distensão e contusão parcial ou total destes canaes. Das diversas lesões resultam ordinariamente per- das sangüíneas, que podem ser rápida e immedia- (*) Nesta operação tive a honra de ser ajudado pelos meus distinctos colle- gas Barão da Villa da Barra e Dr. J. Sodró, na presença dos Srs. Con- selheiros Aranha Dantas, Faria, c diversos médicos militares. ->*s>° 46 '©-<- tamente mortaes, ou de menor importância, pa- rando á simples compressão e muitas vezes sem qualquer intervenção da arte. As hemorrhagias se- cundarias e consecutivas, mais ou menos ao alcance dos agentes hemostaticos, não raras vezes são obser- vadas, e bem assim os aneurysmas diffusos, arte- rioso-venosos e até a gangrena da parte, quando a circulação torna-se nella deficiente. As balas, penetrando nos tecidos molles, produ- zem, portanto, alterações que estão na razão di- recta da velocidade e inversa da distancia. Em re- lação a estes tecidos, modificações especiaes lhes são communicadas, modificações, que em geral con- stituem variedades das feridas por armas de fogo. Levados de encontro ás partes molles, os proje- ctis podem simplesmente contundil-as, ou prati- car um canal mais ou menos profundo. No primei- ro caso se tratará de uma contusão, que não differe das que são produzidas por qualquer outro corpo contundente. Nos outros casos mostram-se ver- dadeiras feridas por armas de fogo, que affectam diversas fôrmas. Assim notam-se as seguintes variedades : 1.° Ferida em gotteira, quando o projectil passa carregando uma pequena porção de tecidos, e tra- çando um verdadeiro sulco sobre o corpo. 2.° Ferida em betêsga, ou melhor em dedo de -*«©o 47 o@k- luva, quando a bala penetra na espessura dos tecidos, fazendo uma abertura simples, ficando o projectil no canal da ferida, ou sendo repellido para fora por algum embaraço á sua marcha. 3.° Ferida em sedenho, quando a parte é atra- vessada de um a outro lado, ficando duas aberturas, uma de entrada e outra de sahida. As feridas da primeira variedade são de ordiná- rio insignificantes, e de um caracter relativamente benigno, a menos que tenham por sede uma região muito rica em vasos, ou as immediações de órgãos importantes, cujo compromettimento possa ser de serias conseqüências. As feridas em betcsga, ou em dedo de luva, teem apenas uma abertura, a de entrada 4° projectil; porém nas profundezas dos planos musculares e aponevroticos, o canal pode repartir-se em muitos, por se haver dividido a bala em diversos fra- gmentos . As feridas em sedenho são susceptiveis ainda de maior numero de variedades. Elias commum- mente apresentam uma abertura de entrada e outra de sahida, mas é possivel haver uma só aber- tura de entrada para duas ou mais de sahida, e vice-versa. Esta circumstancia depende ordinaria- mente da fragmentação da bala, ou da penetração de dois projectis que sahiram por uma mesma aber- -*©« 48 °<§h- tura, ou dos quaes um ficou na ferida, ou voltou sobre si, sendo repellido para fora. , Nos sedenhos de bala quasi sempre a abertura de entrada é menor do que a de sahida. Desde Dupuytren muito se tem discutido, e até sophis- mado, estas questões. Elias porém são tão esté- reis de resultados, e de tão pouca importância em relação ao tratamento, que não valerá a pena in- sistir-se mais sobre isto. Quanto á Medicina Legal, o exame destas cir- cunstancias anatomo-pathologicas pareceria con- duzir o medico ao conhecimento da direcção da arma assassina, da posição em que o paciente re- cebeu o tiro, e até certo ponto á determinação do logar, donde devia ter elle partido. Infelizmente a applicacão a mais exacta e rigorosa de quaes- quer conclusões neste sentido é sempre precária e arriscada. O que parece, entretanto, certo e sem contesta- ção é a natureza e densidade dos tecidos e dos pla- nos atravessados pelo projectil, que são as verda- deiras causas de variarem, por esta fôrma, as dis- posições anatômicas destas feridas. A's vezes o sedenho de bala é duplo, e até tri- plo, ao passo que reconhece como causa uma só bala. Dois factos desta espécie são mencionados pelo Dr. Carlos Frederico. Em um delles o ferido —>*§>* 49 es- teve a coxa direita, as bolsas e a coxa esquerda atravessadas por um só projectil. Graças á disposição anatômica de certas regiões do corpo, as variedades neste sentido podem ser numerosas. Quanto á acção das balas esphericas, actual- mente já em quasi completo desuso, o que ha di- gno de mencionar-se refere-se especialmente a sua extrema mobilidade. Os projectis desta espécie, em virtude de sua forma primitiva, são facilmente des- viados de sua primitiva direcção, reflectindo de qualquer superfície resistente, na qual teem dado perpendicularmente. Então são repellidos sobre a pelle, que, por sua elasticidade, faz com que elles procurem abrir caminho no tecido cellular sub- cutaneo. Assim, podem estas balas praticar longos ca- naes por baixo dos tegumentos, ás vezes tão ex- tensos que o cirurgião com grande diffículdade chegará a precisar o seu ponto de terminação. Em um caso por mim observado, depois do ataque de Curupaity, um soldado, tendo sido ferido por tiro de fuzil no terço superior do braço esquerdo, na occasião em que procurava escalar as trinchei- ras inimigas, apresentava a bala levemente defor- mada na região glutea do mesmo lado. O pro- jectil foi encontrado depois de longas pesqui- —>®> 50 «©■:— zas, e extrahido mediante uma incisão pouco profunda. A marcha fácil desta espécie de projectis em derredor do thorax, da bacia, tio pescoço, da cabe- ça e ainda mais freqüentemente dos membros, é por demais conhecida na pratica para exigir uma demonstração mediante novos factos, que, no era- tanto, abundam na clinica de todos os cirurgiões militares. Estas feridas, á primeira vista, affectam maior gravidade do que realmente teem. Em razão da disposição anatômica da parte, muitas vezes rica de vasos calibrosos ou contendo órgãos essenciaes á vida, julga-se o ferimento complicado; entre- tanto, a marcha franca e rápida das lesões para a cura acaba por demonstrar que a parte não tem sido atravessada pelo projectil, e que este contor- nou-a simplesmente, caminhando no tecido cellular sub cutâneo. Devo á bondade de meu distincto collega o Sr. Dr. Rodrigues da Silva o conhecimento de um facto, que, sendo assás importante pelo ter- mo da evolução da bala, concorre a confir- mar a facilidade com que caminha esta ordem de projectis, mesmo no interior das cavidades splanchnicas. O indivíduo a que se refere esta observação era ->©» 51 <=©>*- um major de cavallaria, que havia sido ferido em combate. Este bravo militar recebeu um tiro de fuzil na região dorsal. Devendo achar-se na ferida o pro- jectil, foram empregados todos os meios de reco- nhecimento em pura perda. Trez dias depois en- controu-se uma bala espherica nas dejecções, sem que d'isso se ressentisse o estado geral do ferido, que não experimentou a menor alteração, não se demorando a ferida em cicatrizar. Os effeitos produzidos pelo chumbo de caça são, em geral, muito menos pronunciados, do que os dos projectis acima mencionados. Estes pequenos corpos esphericos, em virtude de seu volume e de seu numero, tendem sempre a espalhar, ainda mesmo em pequenas distancias. O alvo é envolvido na base do cone traçado por estes projectis, que por esta mesma circumstancia produzem lesões mais extensas do que intensas. Quando, porém, o tiro é dado muito de perto, os estragos são consideráveis, e a vida do paciente corre perigo, não só pelas complicações de que se podem acompanhar, como pelos accidentes a que estão sujeitas taes feridas. Já tive occasião de cui- dar de um individuo por motivo de um ferimento similhante, que tinha sua sede na região infra-espi- nhosa esquerda, devido a um tiro quasi á queima- -;-@° 52 '©*- roupa. O ferido correu grande risco de vida, a sup- puração foi abundante e prolongada; mas, não obstante isto, a cura foi decisiva. Estas feridas são notáveis por uma circumstan- cia, que lhes confere a melhor de suas proprieda- des, em relação ao diagnostico — a conservação de caroços de chumbo nos tecidos, e a tolerância que encontram elles da parte do organismo. Quando a região offerece relações de maior pro- ximidade da artéria para com a veia, não é raro observarem-se, como conseqüência da acção de si- milhantes projectis, aneurysmas arterioso-venosos. Então a pequena esphera metallica compromette igualmente os dois vasos, estabelecendo desde logo a cominunicação entre elles. Isto se ve ordinaria- mente nas regiões crural, poplitéa, carotidiana, na dobra do braço, etc. Em outras condições o ferimento da artéria apenas dará logar a um aneurysma diffuso, que em alguns casos será primitivo e em outros consecuti- vo, conforme a espécie de lesão da artéria, e a época do derramamento de sangue nos interstícios dos te- cidos. Estas desastradas terminações podem apresen- tar-se nas feridas por armas de fogo, qualquer que seja o projectil que as tenha produzido. IV SYMPTOMATOLOGIA TJvJO campo de batalha, e principalmente no r^!? ardor de peleja, nem sempre o combatente se apercebe de seu ferimento, ou da occasião em que o recebe. E' o sangue que lhe tinge a roupa, as pernas que adormecidas e pesadas vacillam sob o peso do corpo, o braço que lhe deixa cahir a arma, ou a voz do companheiro, que lhe denunciam as suas feridas. Em algumas occasiões vè-se a bala que se en- caminha em recorchetes, e da qual se pode muitas vezes desviar; outras vezes é a bomba, prestes a rebentar, cahindo no meio das fileiras, que fi- —>«©° 54 °®*<- cam desta sorte envolvidas por seus numerosos estilhaços. Nestas condições resta ao ferido plena consciên- cia do acontecimento, e seus mais importantes epi- sódios, com quanto não experimente elle as dores que são o apanágio constante da acção de qualquer outro agente vulnerante. Este phenomeno, que até certo ponto faz prever a natureza especial das feridas por armas de fogo e que lhes é peculiar, explica-se pela velocidade que acompanha o projectil, e pela rapidez de sua acção. A divisão dos filetes nervosos se opera de um modo instantâneo, e a suspensão da acção sen- sitiva segue-se tão de perto, que a impressão das diversas desordens locaes não chega mais ao sen- sorium. A sensação fica então reduzida a bem pouco: a um simples torpor, isto é, ao conhecimento da commoção da parte, que é adquirido pelo cérebro. Este, a seu turno, também contribue para ex- plicar o phenomeno. Se nos primeiros momentos da luta o soldado sente-se apoderado de receios, e se deixa impres- sionar, muitas vezes, pela idéia da morte, depois dos primeiros recontros, o calor volta ás extremida- des, a sua força e o seu enthusiasmo se retemperam; porque então já não é somente o sentimento do dever que o impelle para o inimigo. ->*®o 55 o®w_ Apodera-se delle immediatamente uma certa excitação cerebral, que lhe apaga da memória a imagem dos entes que lhes são mais caros, cerra- lhe os olhos aos maiores perigos e á própria morte, ensurdece-lhe os ouvidos aos gritos agonisantes de seus companheiros e ás supplicas dos vencidos, que lhe pedem a vida, acabando por embotar-lhe a sen- sibilidade á acção dos agentes vulnerantes. Elles gritam e vociferam, insultando o inimigo, como acontecia freqüentemente aos Paraguavos; outras vezes tornam-se simplesmente loquazes e espiri- tuosos. E' certamente devido a esta espécie de halluci- nação que a historia das batalhas deve um certo numero de admiráveis episódios, actos de temeri- dade que chegam á loucura, e scenas do maior estoicismo, que se perderiam para o romance das guerras, se por ventura estes desgraçados não fos- sem tantas vezes victimas de suas feridas, antes mesmo de cessar esta excitação cerebral. Quando, porém, o seu ferimento não é de ordem a produzir a morte, ou que esta se faz esperar além das primeiras 24 horas, é que mostram-se estes heroes taes quaes realmente são. Seu semblante é pallido e o espirito abatido; a loquacidade se desvanece; elles gemem pelas dores que se despertam em suas feridas, lembram- -x®o 56 °@x— se então da familia, reputam graves os seus feri- mentos e supplicam que o salvem. 0 estoicismotem cedido ao império de suas misérias; já então se impõe a apreciação calma e reflectida dos aconte- cimentos. As dores, entretanto, podem revelar-se desde que o indivíduo recebe o tiro, não obstante a embria- guez dos vapores da pólvora. Estas dores se ma- nifestam de um modo atroz, sendo por vezes acom- panhadas de convulsões. Isto tem logar quando nervos importantes ou plexus nervosos teem sido despedaçados. Em outras occasiões são encontrados em cami- nho para as ambulâncias, indivíduos que mal se podem firmar sobre as pernas. Em um estado de tremor geral, elles teem o semblante desfigurado, os olhos desvairados, apelle em extremo pallida e co- berta de suor; ve-se-lhes as maxillas baterem unia contra outra, como em um accesso de febre inter- mittente; accusam uma sensação geral de frio, che- gando a cahir em verdadeiras lypothymias. Apre- sentam náuseas, vômitos e não raras vezes soluços. Este estado, que nem sempre corresponde ás le- sões de maior gravidade, pode ser considerado simples effeito da pusillanimidade do ferido. Como prova irrefragavel do contrario, apontam-se casos idênticos em militares de reconhecida bravura. -xs>« 57 «©<<-* Isto, ao meu vêr, depende freqüentemente do temperamento do indivíduo, das susceptibihdades herdadas, de uma innervação mórbida, e muito es- pecialmente da sede do ferimento, sobretudo quando elle penetra as grandes cavidades splan- clmicas, ou teem logar em suas proximidades. O habito de observar as lesões adquiridas no campo de batalha facilita de um modo admirável a apreciação de phenomenos de uma physionomia equivoca. Para que esta se revele, de sorte a ser bem comprehendida, são precisas condições pre- liminares especiaes. E' assim que o exame da parte deverá ser feito depois de tirada a roupa ao ferido, sendo este col- locado na posição, pouco mais ou menos, em que se deu o ferimento. O aspecto das feridas por armas de fogo é pe- culiar a este gênero de lesões, e diversifica do das demais feridas produzidas por outra ordem de cau- sas, do mesmo modo que já se viu differirem estas mesmas causas, e seus phenomenos physio-patho- logicos. A acção cios projectis produz feridas de bordos ordinariamente irregulares, e de uma superfície contusa. Os tecidos que se offerecem em seu cen- tro, ou na superfície do canal excavado em fôrma de tunnel, atravez das partes molles e do esqueleto, -hs>° 58 <>©■<- são de cor escura ou denegrida, do mesmo modo que a superfície dos tegumentos circumvizinhos. Estes, no emtanto, podem offerecer variadas al- terações, desde a mais simples sugillação, até a cor livida da mortificação, que acompanha as grandes contusões. Contra o que faria suppor a propriedade explo- siva da pólvora, empregada como o motor dos pro- jectis, nenhum dos caracteres próprios á queima- dura se apresenta nestas feridas. Somente em certas e determinadas circunstancias, rarissimas na pratica militar, é que poderá coincidir esta lesão dos tecidos. Quando os tiros são dados muito á queima- roupa, ou que a detonação se produz na occasião em que o cartuxo é impellido no cano, ou na cula- tra d'arma, a chamma pode communicar-se ás rou- pas do ferido, e produzir extensas queimaduras. Mau grado condições tão favoráveis á producção destas lesões, não são as suas desordens, que, ainda n'estes raros casos, attrahem mais freqüente- mente a attenção do cirurgião, que tem a tratar então do arrancamento da mão, ou quando nada dos dedos, eda penetração dos grãos de pólvora, infiltra- dos profundamente em largas superfícies do derma, representando o papel de verdadeiros projectis. Os caracteres symptomaticos resultantes da ~h®<> 59 <><^<- contusão dos tecidos, são susceptíveis de variar, segundo a violência do agente que occasionou as desordens locaes. Com quanto a desorganisação, mais ou menos limitada, da superfície das feridas por armas de fogo seja um caracter inherente a ellas, as suas mais largas proporções, tornando-se verdadeiras complicações, reclamam sempre os maiores cuidados da parte do cirurgião- Estas feridas são geralmente insensiveis á pres- são dos dedos, nas primeiras horas que se seguem ao ferimento. A exploração dirigida com o fim de adquirir-se a noção exacta do estado das partes di- vididas, e das diversas circunstancias que podem complicar a ferida, é então muito pouco dolo- rosa, e se impõe muitas vezes para o diagnostico especial destas lesões. A seccura dos tecidos, compromettidos na acção dos projectis, é mais outro phenomeno importante, que se observa nas feridas por armas de fogo. Os seus bordos se apresentam ás vezes mais ou menos endurecidos, e raramente se escoam líquidos de sua superfície. E' natural que esta circumstancia contribua a explicar a limitada abundância do corrimento san- güíneo, que costuma ser tão moderado, em virtude da prompta obturação dos vasos na superfície mesma da ferida. -*§>. 60 »<§*- Quando se tem de examinar estes doentes, apenas se encontram nas iminediações do ponto offendido os vestígios de sangue deixado sobre a pelle, ou prendendo as roupas á ferida. Passadas as primeiras horas que se seguem ao ferimento, as desordens, a principio puramente anatômicas, se manifestam solemnemente por mo- dificações funccionaes, que em geral não acom- panham em suas differenças as variedades de forma, e configuração das feridas. Os phenomenos começam a reflectir as mudanças experimentadas pela parte offendida, em virtude de ura excesso de actividade, que o organismo oppõe ao insulto trau- mático. Assim as manifestações funccionaes se accentuam, e o caracter das lesões se revela com mais franqueza. Restabelecida na parte a actividade funcciona- vel, suspensa pelo facto da commoção local, os lí- quidos affluem em abundância para as immedia- ÇÕes da ferida, attrahidos pela irritação de que se apoderam os elementos orgânicos, em virtude da acção mesma do agente perturbador. Os vasos se enchem, se destendem a ponto de regorgitarem, nos interstícios dos tecidos, os elementos de ver- dadeiras neoplasias. Deste estado resulta um quadro symptomatico, que com a maior propriedade se tem denomina Io -;-©<> 61 «.©*— reacção inflammatoria. A parte se intumesce, se tinge de uma cor mais ou menos rubra, os feridos queixam-se de uma sensação de peso, e accusam dor á pressão. A superfície da ferida pelas diver- sas aberturas, que separam as partes deseccadas, filtra uma sorosidade sanguinolenta, que pode ad- quirir certas proporções, segundo o grau de tur- gescencia da parte. Este estado se faz acompanhar algumas ve- zes de uma agitação moderada da circulação, que se reflecte no pulso, augmento de tempera- tura local e geral, com horripilações, sede e inap- petencia. Quando ha uma espessa camada de tecidos con- tusos a eliminar-se, um circulo de cor purpurea demora-se por mais trez ou quatro dias, sendo substituído pela formação de pus, que se prolonga até final desagregação das partes mortificadas. Então os phenomenos geraes já se teem ausen- tado, a camada cie botões carnosos se offerece ás vistas do pratico, que nella descobre a promessa de rápida cicatrização. Este facto, nas feridas sim- ples, tem logar dentro em trez semanas a um mez. Quando as cousas não se passam com tal regu- laridade, é indispensável examinar-se a parte cui- dadosa e pacientemente; porque quasi sempre o phenomeno se liga á existência de uma complica- ->•©<> 62 c©*- çao, ou um accidente qualquer sobre vem á marcha da ferida, desviando-a da cura. Mais tarde, quando tratar destas circumstancias diversas, que podem ter sua origem com a lesão mesma ou surprendel-a no meio de seu trata- mente, serão estudados, ao mesmo tempo que cada uma dellas, os phenomenos que as cara- cterisam. A symptomatologia das feridas por armas de fogo é extremamente variada e importante, se- gundo a região ou o órgão que recebe a acção do projectil, e conforme a intensidade desta. As feridas do cérebro podem produzir delirio, abolição dos movimentos ou de sua coordenação, aphasia, perda da memória, dando-se freqüente- mente a compressão cerebral, que se revela pelo coma e retardamento do pulso. Os abeessos intra- cranianos não são raros após os ferimentos desta região, e então a compressão é devida á collecção purulenta, que recalca a massa cerebral. Um facto observado na generalidade dos feridos, cujas lesões se estendem ao encephalo, é o estado de me- lancolia, que se apodera destes indivíduos, e a nos- talgia que os atormenta; elles evitam a conver- sação, e procuram a sombra e o isolamento. Um symptoma muito commum nestes ferimen- tos é a commoção, que ás vezes se limita ao entor- —i-@o 63 *©-:— pecimento, scintillamento do olhar e fraqueza mus- cular geral, produzindo, quando mais intensa, perda completa do conhecimento, de duração mais ou menos longa. As feridas da base do craneo se revelam ordina- riamente pela ecchymose conjunctival rápida, acompanhada de exophtalmia pronunciada, e de corrimento sangüíneo, ou cie um liquido sero-san- guinolento pelo nariz ou pelo conducto auditivo externo. As lesões da face são acompanhadas de dor vi- víssima. Esta circumstancia é devida á delicadeza dos tegumentos, e principalmente á grande riqueza nervosa da parte. Os estragos nesta região, ás vezes, não guardam proporção com a violência e intensidade da causa. Deve-se accrescentar a estas condições a maior fragilidade do esqueleto sobre que assentam as partes molles, a delicadeza e tenuidade das lâminas ósseas, a multiplicidade de suturas em prejuízo da rijeza do conducto ósseo, a existência de saliên- cias e cavidades, fáceis as primeiras de serem ar- rancadas pelo projectil, e as segundas de serem franqueadas, ficando compromettidos os órgãos nellas contidos. A dilaceração do canal de Stenon dá logar ao derramamento da saliva pelos lábios da ferida; as -y®9 64 »©■<- lesões das palpebras facilitam a producção de um edema, ou de um emphysema rápido; a penetra- ção de um projectil nos seios frontaes é origem de cephalalgias intensas, que só cessam pela sua ex- tracção. A abertura do seio de Highmore é sempre se- guida de suppurações abundantes, inflammação in- tensa das partes circumvizinhas, e mais longinqua- mente de tumores nesta cavidade. Os ferimentos da maxilla inferior, relativamente benignos, pri- vam o indivíduo da mastigação, e são na plurali- dade dos casos seguidos de necrose do osso, e, ain- da quando a cicatriz parece defini vãmente organi- sada, se exulcera para dar sahida a sequestros. Al- gumas vezes as fracturas deste osso dão logar a es- quirolas, que se podem revirar para o lado da cavi- dade buccal, ferindo a lingua, perforando as glân- dulas sublinguaes ou se encravando no pavimento da bocca. O globo ocular é também algumas vezes sede de importantes lesões, que ordinariamente com- promettem a funcção visual. Os corpos estranhos mais freqüentemente encontrados neste tão delicado órgão são as cápsulas de espoleta. Uma inflamma- ção intensa se apodera de suas diversas membra- nas, e a fusão cio olho não se faz muito esperar. Quando o corpo estranho é tolerado, uma irido-cy- ->«©o 65 «©■<— elite se perpetua, acompanhada de dores intensas, que indicam urgentemente a intervenção cirúrgi- ca. Se esta não é promptamente satisfeita, ou não tem sido racional, uma ophtahnia sympathica pode sobrevir, e -o infeliz perder igualmente o outro olho. Nas feridas do larynge o ar escapa-se sibilando, e o sangue se derrama no interior do tubo aéreo, de- terminando tosse, dyspnéa e em certos casos a as- phyxia immediata. Uma bala na trachéa produz os symptomas de suffocacão os mais violentos, desde o momento de sua introducção. A inflammação que sobrevem a estes ferimentos é sempre da maior intensidade, em relação á mucosa do larynge, que por si só é capaz de produzir a morte do ferido, já por effeito mecânico, interceptando a entrada do ar, já por suas conseqüências, entre as quaes sobresáe a gangrena. A perda da phonação é um symptoma não raro destas feridas. Quando o pharynge e o esophago são atraves- sados por um projectil, dá-se a extravasação dos lí- quidos para o exterior, o que reclama o uso da sonda esophagiana, O estreitamento destes órgãos é a conseqüência mais commum de seus ferimentos por armas de fogo. As feridas do corpo thyroide são complicadas h*@í> 66 *<§*- sempre de copiosas hemorrhagias, podendo attingir a maior gravidade. As feridas do thorax se acompanham de phe- nomenos especiaes, segundo a natureza dos órgãos offendidos. E' assim que se podem apresentar fra- cturas das costellas, da omoplata e da clavicula com o seu cortejo de symptomas próprio, a in- flammação e suppuração da pleura, principalmente quando a bala cáe nesta cavidade, hemorrhagias seguidas de hemothorax, etc Quando o pulmão é ferido, os principaes sym- ptomas são: o escarro sanguinolento, ou a expul- são de uma certa quantidade de sangue misturada com o ar, a hemorrhagia pelos lábios da ferida e a expulsão do ar por esta abertura, o emphyseina, a pleurite ou pleuro-pneumonia consecutivas, a hérnia e raramente a gangrena do pulmão. Nas feridas do coração, quando a morte não é instantânea, o ferido accusa dores intensas no esterno, a dyspnéa é considerável, o pulso denuncia o estado de perturbação circulatória, é pequeno e intermittente, e algumas vezes desapparece de- baixo dos dedos do observador, que vê então o ferido cahir em um estado de verdadeiro deliquio. As dores na base da caixa thoraxica, que se irra- diam algumas vezes até a espadoa, e augmentam- sepela inspiração, a dyspnéa, mais ou menos nota- +^« 67 *&<— vel e os movimentos convulsivos do diaphragma de- notam, em certo numero de casos, o comprometti- mento deste órgão. Ajuntam-se ainda a estes pheno- menos soluços, pequenhez do pulso, anciedade pre- cordial, riso sardonico e resfriamento das extremi- dades. Os ferimentos do abdômen, quando penetrantes, dão logar á extravasação de sangue, e seu derrama- mento na cavidade peritoneal. Este acontecimento se revela por dores, anciedade, resfriamento do cor- po, suores frios, náuseas e mesmo vomito. Nos casos em que o derramamento é pouco considerável, estes phenomenos são de curta duração para se repeti- rem, mas de um modo muito mais pronunciado e temido pelo apparecimento da peritonite. Aproveito a occasião para notar que muito se tem exagerado a decantada sensibilidade do peri- toneo, em virtude da qual todos os cirurgiões tre- mem á idéia de trabalharem nas proximidades desta membrana, e recuam de qualquer operação dentro da cavidade do ventre. Eu penso, ao con- trario, que tamanhos receios são infundados e até pueris. E' certo que muitas vezes sobrevem a pe- ritonite ás lesões da parede do ventre, de qualquer natureza que sejam; porém nas circunstancias re- gulares, salvando-se a interferência de causas ex- ternas, esta inflammação mostra-se obediente, na ->©° 68 o®*!- grande maioria dos casos, aos meios racionalmente empregados. Estes são os resultados constantes de minha longa pratica, oncle só ha registradas termi- nações fataes de peritonite, em virtude de seu caracter septicemico. As feridas penetrantes desta cavidade sorosa podem também ser complicadas de sahida do epi- ploon e de visceras, que são reconhecidas no exa- me da ferida. Não é raro encontrarem-se no cam- po de batalha infelizes com o ventre dilacerado, e os intestinos ainda mornos, fazendo saliência para fora do abdômen. As feridas do fígado se revelam quasi sempre por hemorrhagias, e os demais symptomas de que se fazem acompanhar as lesões penetrantes da cavidade abdominal. Elias determinam uma hepa- tite mais ou menos violenta, dando logar muitas vezes á suppuração abundante, ictericie, desarran- jos gastro-intestinaes, dores intensas, além da pe- ritonite, que quasi sempre complica o estado de suppuração do fígado, e os abcessos deste ór- gão, em que o pus é derramado na cavidade sorosa. Quando ha lesão dos rins, apresenta-se clôr na região offendida, retracção do testículo, hematuria, corrimento de urina pela ferida. Este phenomeno é commum ás lesões penetrantes da bexiga, que, além -f*®° 69 °©x- de dores espalhadas pelo abdômen, provocam a dy- suria e mesmo anuria, uma infiltração urinosa e gangrena do órgão. Outras vezes o paciente tem desejos repetidos de ourinar, o corrimento pela urethra é de sangue misturado á urina; a sonda reconhece o estado de vacuidade deste órgão, dando sahida a algumas gottas de um liquido sanguino- lento. As feridas do estômago se apresentam ordinaria- mente acompanhadas de phenomenos especiaes, que muitas vezes são confundidos com os das lesões intestinaes. Elias determinam calefrios, suores, dor epigastrica, vômitos ás vezes sanguinolentos, sede, uma pallidez geral e lipothymias. Como conse- qüência destas lesões observam-se freqüentemen- te peritonites, principalmente se o estômago se achava cheio de alimentos na occasião do successo. As lesões dos intestinos são fáceis de ser conhe- cidas, quando esta porção do tubo gastro-intestinal faz hérnia nos bordos da ferida abdominal. A sa- hida de matérias intestinaes e seu derramamento na cavidade abdominal são symptomas muito freqüen- tes, e podem ser decisivos em relação ao diagnostico. Apresentam-se igualmente dores vagas no ventre, eólicas, tympanite, seguidas de fraqueza geral, an- ciedade, suores frios, resfriamento, soluços e um estado de verdadeiro pânico, de que se apodera o —;»©° 70 »©*<— paciente. Estes caracteres são geralmente offereci- dos pelas feridas graves, mas algumas vezes elles mostram-se nos ferimentos simples da cavidade peritoneal. Por este breve resumo de symptomas pertencen- tes aos casos mais importantes, segundo a sede das lesões, vê-se o quanto pode o seu estudo paciente e minucioso influir em relação ás noções diagnosticas indispensáveis, e especialmente ao tratamento que offerece indicações diversas a preencherem-se. O estudo e a pratica dos grandes hospitaes mili- tares, em tempo de guerra, completará a instrucção do cirurgião novel, em relação ao muito que pode- ria ainda dizer á respeito, limitando-me, nas cir- cumscripções deste trabalho, ao que ha de mais saliente e importante acerca da symptomatologia das feridas por arma de fogo. V COMPLICAÇÕES riy§\ istinguem-se commummente, na pratica, as deferidas por armas de fogo em simples e com- plicadas. Esta divisão, que acha apoio nos estudos anatomo-pathologicos, não attinge na clinica a importância que fora para esperar-se. O espirito de observação, ahi tocando, encontra qualquer cousa que se lhe escapa á apreciação, sem lhe deixar o fio que o deve conduzir ao conheci- mento do facto mórbido em si mesmo, e em suas importantes relações com o resto da organisacão. Esta ordem de investigações, de tamanhas van- tagens para a Sciencia e maiores ainda para a hu- -)-®9 72 <>©»<- manidade, aguarda os progressos da histologia e histo-chimica modernas. Em quanto isto não se realisa, cumpre saber o que se deve, por ventura, entender por ferida sim- ples em contraposição ás denominadas compli- cadas. Ao primeiro exame, parece que similhante modo de encarar as alterações mórbidas se refere prin- cipalmente á terminação das lesões, produzidas pe- las diversas espécies de causas vulnerantes. Assim, os ferimentos simples deveriam tender sempre para a cura, do mesmo modo que os com- plicados se afastariam delia, em virtude de emba- raços e tropeços levantados á sua marcha pelas di- versas circumstancias inherentes ás lesões mesmas, constituídas sob a fôrma de complicações. Infelizmente, nada de absoluto se tem a consi- gnar nesta ordem de estudos, que, força é confes- sar, ainda se acha em sua phase inicial, para o mui- to que delles a pratica cirúrgica exige. Não é raro encontrarem-se feridas consideradas simples, consistindo por vezes nas mais limitadas e insignificantes lesões dos tegumentos, dando lo- gar á uma inflammação intensa, com disposição a estender-se aos órgãos da vizinhança, cuja pertur- bação vem, a seu turno, modificar desfavoravel- mente a marcha da cicatrização. A suppuração se -*©° 73 o®»!- estabelece, e por ella é aberta ao organismo a porta para os mais graves accidentes, de uma ter- minação funesta, na grande maioria dos casos. Ao contrario disto, todos os dias observam-se fe- ridas complicadas de importantes lesões dos ossos, nervos, artérias, membranas sorosas. vísceras, etc, sem que o paciente accuse qualquer perturbação grande das funcções ; e a cicatrização se realisa no mais curto prazo de tempo possível. Onde, portanto, a importância absoluta, que se tem geralmente ligado ás complicações, em relação á marcha e terminação das feridas por armas de fogo'? Não obstante a convicção do pouco que vale, na pratica, esta divisão, ella subsiste na Sciencia, e se acha em perfeita harmonia com os estudos ana- tômicos modernos, offerecendo á Pathologia geral a feliz opportunidade de resolver intrincados pro- blemas, relativos ás lesões traumáticas em geral, e aos seus accidentes em particular. Estas vanta- gens tornam-se ainda mais salientes, quando, no tratamento respectivo, o cirurgião, tendo em at- tenção as lesões locaes, procura instituir as indi- cações, que devam servir de base ao tratamento das lesões. São complicações ás feridas por armas de fogo: 1.° as queimaduras, 2.° a presença dos projectis e -*®° 74 o©° 75 «s*- attinge desde logo um alto grau de gravidade, re- clamando toda solicitude do pratico, que volve então a sua attenção, e quantos meios tem ao seu alcance, contra a perigosa occurrencia, que tende ao aniquilamento da vida. Queimaduras — Esta complicação, de impor- tância por demais limitada, é sempre rara. As feridas por armas de fogo, como já deixei dito, não se ressentem do caracter das queimaduras; porquanto as balas não transportam o calorico necessário para produzil-as, e muito menos se des- envolve este, por uma circumstancia qualquer, na sede da lesão. Ha, entretanto, casos muito especiaes, em que verdadeiras queimaduras podem effectuar-se. Isto se dá ordinariamente quando, em virtude da con- servação de alguma parcella do cartuxo em ignição, na occasião de carregar-se a arma, esta clespara, despedaçando e arrancando as mãos ou os dedos ao atirador, e queimando-lhe quasi sempre o rosto. O mesmo acontece, quando os fuzis ou boccas de fogo rebentam, podendo então a chamma esten- der-se á roupa do paciente, e levar queimaduras a largas superfícies. De qualquer modo, porém, a desorganisação dos tecidos é muito superficial e limitada, além de ser de extrema raridade na pratica militar. —s-®=> 76 o©*— A gravidade desta complicação é, na grande maioria dos casos, nulla. O que vale a destruição superficial e limitada dos tecidos, que se vê na queimadura complican- do taes casos, em comparação á desorganisação profunda, que tantas vezes produzem os projectis arremessados pelas armas de fogo ? Estas lesões, longe de serem accusadas na pra- tica como embaraço á cicatrização, inspiravam anti- gamente a escolha dos methodos curativos empre- gados, os quaes eram de ordem a cauterisar os te- cidos; e se similhante pratica foi sempre em prejuí- zo da cicatrização, que por esta fôrma se retar- dava, em virtude da suppuração mais abundante. por um outro lado conseguia as mais preciosas vantagens, impedindo a penetração dos germens productores dos diversos accidentes. Corpos estranhos — A conservação dos pro- jectis no interior do canal das feridas é um facto muito commum na pratica cirúrgica. Os grandes corpos movidos pela deflagração da pólvora, nos ti- ros de canhão, raramente são encontrados no seio dos tecidos. Não ha, porém, impossibilidade do facto, por- quanto Larrey falia de um soldado, que apresenta- va uma ferida da região inguinal, onde, contra a expectativa de todos os cirurgiões que o haviam -x®« 77 «®x- observado, foi encontrada uma bala de artilheria pesando cinco libras. Eu tenho conhecimento de um outro facto idêntico, no qual a bala pesava sete libras. Comprehende-se, entretanto, que não é isto o que se dá ordinariamente em relação a estes volu- mosos projectis, cujos estragos, ao contrario, são muito mais sérios e extensos, e as desordens func- cionaes mais profundas. Das bombas entranham-se muitas vezes os es- tilhaços em certas regiões mais abundantes de par- tes molles, e podem facilmente passar desaperce- bidos á inspecção e até mesmo á exploração do cirurgião. Os projectis, porém, maior numero de vezes en- contrados nas feridas, são inquestionavelmente as baias de fuzil, e destas mais freqüentemente as esphericas do que as oblongas. Durante a campanha cio Paraguay abundaram os casos de feridas complicadas, pela conservação de balas de médio calibre, taes como já se viu en- trarem na composição das metralhas. Estes proje- ctis, apezar de seu notável volume, passavam al- gumas vezes desapercebidos nos primeiros momen- tas da lesão, sendo descobertos e extrahidos mais tarde. Entram também no numero dos corpos estra- -*®<. 78 «se- nhos os fragmentos metallicos, bastilhas de madei- ra, que os projectis levam adiante de si em plena velocidade. Diversos outros corpos são susceptíveis de ser igualmente impellidos, podendo demorar-se no interior das partes molles. E' assim que não é raro descobrirem-se nas profundezas das feridas botões de cobre, ou de osso, pedaços de couro e de panno pertencentes á roupa do ferido, fragmentos do ca- pote, e até moedas e outros corpos mais ou menos resistentes, que na occasião do ferimento se acha- vam no bolso do paciente. Na Memória do Dr. Carlos Frederico se acha perfeitamente descripta a observação de uma pra- ça do encouraçado Colombo, apresentando um fe- rimento, que parecia produzido por estilhaço de bomba na região iliaca esquerda. A exploração, tornada fácil, pelo diâmetro que offerecia o canal cia ferida, revelou a existência de uma fractura do osso iliaco e de numerosas esquirolas. A rapidez com que sobreveiu a morte não per- mittiu qualquer tentativa operatoria, descobrindo- se na autópsia um pedaço de parafuso de ferro, ainda com a mossa da bala, que o separou da peça e o impelliu na cavidade da bexiga, onde se achava perfeitamente accommodado. Na esquadra ferimentos desta espécie não são -X@» 79 °©-!- raros; por quanto as diversas partes do navio com facilidade se desdobram em fragmentos pelo choque do projectil, que passou muitas vezes á distancia dos feridos. Os diversos corpos estranhos, por sua conser- vação no seio dos tecidos, dão logar a inflamma- ÇÕes mais ou menos intensas, que se terminam em geral pela suppuração. Esta vem acompanhada de dores que se prolongam, e que somente se extin- guem de um modo definitivo, depois da extracção do corpo estranho. A eliminação das balas não raras vezes tem logar espontaneamente. A suppuração isolando o projectil, pocle este aproveitar-se de uma posição vantajosa para ser expellido da ferida. Isto pode dar-se muito facilmente durante o transporte dos feridos, e mesmo na occasião de tirar-se a roupa ao paciente, continuando este, muitas vezes, a acre- ditar que a bala se conserva na solução de con- tinuidade, por cuja extracção insta sem cessar. As esquirolas soltas, e as que se desprendem de suas adherencias aos tecidos, representam o papel de verdadeiros corpos estranhos, e como taes são consideradas na pratica, reclamando exactamente os mesmos cuidados. A presença dos corpos estranhos em casos de longas suppurações, que tem notavelmente enfra- -x®» 80 «@x- quecido os feridos é indicação para uma inter- venção operatoria hábil, e pode até reclamar a ablação do membro, em cujo exame anatômico en- contra-se então o projectil ou o corpo estranho, que assim frustrou todas as tentativas de extracção. Lesão dos vasos — A divisão dos vasos é uma lesão inevitável em todas as feridas por armas de fogo. Se as artérias mais volumosas por sua dispo- sição anatômica, sua fôrma arredondada, e sua ex- trema mobilidade, graças aos laços cellulosos que as prendem aos órgãos da visinhança, podem com certa facilidade furtar-se á percussão cio projectil, não acontece o mesmo com os vasos mais tênues, que são sempre comproinettidos. Sendo, porém, attingido no geral dos casos os vasos superficiaes, que são de ordinário de diâ- metro mesquinho, e obturados constantemente pelos retalhos dos tecidos lacerados, o corrimento sangüíneo torna-se quasi nullo. Quando, ao contrario disto, vasos de certa ordem, arteriaes ou venosos, são divididos, hemorrhagias copiosas podem sobre vir, necessitando a interven- ção cirúrgica, em razão de sua abundância e dura- ção. Os indivíduos sentem-se enfraquecidos, co- brem-se de suores frios, empallidecem notavel- mente, podendo este estado terminar-se por uma syncopa. O apparecimento deste phenomeno de- ->©• 81 *®*— termina a cessação da hemorrhagia, para não mais voltar, ou para ser succedida de novo corrimento de sangue, se a lesão é irremediável, ou as circum- stancias da occasião tem distanciado o ferido das vistas do cirurgião. Ordinariamente a abertura das artérias mais ca- librosas, taes como a aorta, o tronco innominado, as subclaveas, iliacas, femuraes, carótidas, etc, dá logar a hemorrhagias tão copiosas, que não per- mittem o emprego dos meios apropriados. As perdas são então rápidas e abundantes, e a morte se segue á ellas quasi instantaneamente. Ainda nos casos em que é possivel levar-se de prompto o soccorro a estes infelizes, comprehende-se bem a impossibili- dade de conter-se o Ímpeto da corrente sangüínea em um canal de tão largo diâmetro, principalmente quando a compressão entre a ferida e o coração é impraticável. Nos casos em que a artéria e a veia principaes de um membro teem sido despedaçadas e abertas, em virtude do arrancamento do mesmo membro, é possivel que a hemorrhagia não corresponda á importância dos vasos compromettidos. Pelo sim- ples facto do arrancamento, a artéria sendo dis- tendida, como os demais tecidos e órgãos, as mem- branas média e interna mais friaveis rompem-se, ao passo que a externa, mais extensível, continua -x®o 82 "&<- a distender-se até romper-se igualmente, resul- tando de similhante circumstancia não coincidir a sua divisão com a das outras, que se acha mais acima. Os bordos franjados destas membranas, re- pellidos contra a cavidade do vaso, constituem um verdadeiro embaraço á sahida do sangue, facili- tando conseguintemente a sua coagulação. Este facto é commum, quando grandes balas de artilheria, ou bombas antes de sua explosão, dão perpendicularmente sobre o membro, ainda anima- das de grande velocidade. O bravo Io tenente Mariz e Barros foi victima de um ferimento similhante. A bala separou-lhe a perna da coxa pela articula- ção, e, não obstante a imminencia de uma hemor- rhagia rapidamente mortal, graças á disposição favorável da lesão dos vasos, houve tempo de ser o ferido conduzido para o hospital de sangue, onde soffreu a amputação da coxa, á qual succumbiu. Nestes casos cumpre que o pratico não se illuda, e que reflicta seriamente sobre o perigo á que está exposto o paciente. Durante pouco tempo, em quanto o ferido se acha sob a influencia do estupor, tudo se passa calma e tranquillamente ; o orga- nismo se mostra então indifferente ás grandes des- ordens soffridas. Mas, logo que sobre vem a reacção inflammatoria, e o sangue é attrahido em cer- ta abundância para o ponto da mutilação do mem- —>«@o 83 «>©-(— bro, o curto e tênue coalho, que obtura os vasos principaes, não resiste ao impulso da onda san- güínea, descolla-se, dando logar á uma hemorrha- gia mortal. Se a artéria não é dividida, em virtude da acção do projectil, em tocla a circunferência, as perdas sangüíneas serão abundantes, podendo occasionar em poucos momentos a syncopa. Então um coalho se forma na abertura do vaso, e é por elle obstada a sahida do sangue. A hemorrhagia parece á pri- meira vista debellada, quando ella não foi mais do que adiada. Dentro em algumas horas, porém, pe- los movimentos communicados ao paciente em seu transporte, ou em virtude de tentativas impruden- tes de exploração, a temível complicação volta, muitas vezes na ausência do cirurgião, podendo-se encontrar o ferido banhado em seu próprio sangue, morto ou agonisante. E' para obviar estas desgra- çadas conseqüências que o Dr. Legouest insiste sempre na exploração em taes casos, e pratica des- de logo a amputação, não só como meio de domi- nar a hemorrhagia, mas igualmente no intuito de prevenir longas suppurações, indispensáveis para a eliminação das partes laceradas e tocadas de mortificação. Os mesmos receios não deve infundir a lesão de um vaso de médio calibre, em que o coalho pode —^>. 84 °@-í— ser vantajosamente amparado pelas peças de cura- tivo, resistindo desta sorte á tensão vascular. Quando a artéria se acha nas paredes de uma cavidade importante, como, por exemplo, as arté- rias intercostaes no thorax, a epigastrica no abdô- men e a meningéa média na cavidade craniana, a hemorrhagia pode ser tanto mais séria, quanto o sangue mais freqüentemente se derrama para dentro de taes cavidades. Nos dous primeiros casos ha dyspnéa, anciedade, resfriamento, vô- mitos, pequenhez do pulso e lipothymias, que são seguidas quasi sempre pela morte; no ultimo caso, tem logar a compressão da massa cerebral, e com ella as mais graves desordens, que ultimamente tem levado alguns práticos á procederem a liga- dura da artéria. A divisão de um simples ramusculo arterial, praticada pela aresta cortante de um fragmento de lata, ou de um estilhaço de bomba, em certas e de- terminadas condições, é capaz de produzir abun- dantes hemorrhagias, que podem infundir os maio- res receios ao cirurgião. Para isto basta que a di- visão do vaso não seja completa. As suas extremi- dades não se podem retrahir, ligadas pela ponte resistente de tecido arterial que foi poupada, e o coalho não consegue então formar-se, em virtude da livre sahida que se offerece ao sangue. —>■©• 85 •©*;- Uma similhante complicação tive occasião de observar, no anno passado, quando regia a cadeira de Clinica externa. Na occasião da visita soube que havia entrado um doente com uma ferida do couro cabelludo, complicada de hemorrhagia re- belde. Junto a elle se achava o interno do ser- viço, empregando os meios ao seu alcance para sustar o sangue, que atravessava com summa fa- cilidade as camadas de appositos diversos, zom- bando de todos os agentes hemostaticos. O pa- ciente já se achava esgotado de forças, e o dis- tincto alumno mostrava-se não menos fatigado de tantas tentativas mallogradas. Reconhecendo que se tratava da divisão incompleta de algum ramus- culo arterial, por golpes de bisturi successivos au- gmentei as dimensões da ferida, tanto em com- primento como em profundidade. Logo que re- tirei o instrumento, o corrimento cessou como por encanto. Similhante pratica freqüentes vezes tenho em- pregado, sempre com as mais brilhantes e assigna- ladas vantagens. Lesão dos nervos — As feridas por armas de fogo, do mesmo modo que as produzidas por instru- mentos cortantes, podem ser complicadas de lesão dos nervos e dos plexos nervosos. Estas partes são simplesmente divididas ou laceradas. No primeiro —x©«> 86 °©»<— caso, sendo a irritação dos cordões nervosos pro- duzida por uma causa vulnerante, de acção mais moderada, as dores não são muito intensas, rara- mente se prolongam; porém a paralysia é a conse- qüência necessária do facto. Com o segundo modo de actuar dos projectis, havendo as mesmas conse- qüências, em relação á motilidade, que da mesma sorte fica perdida para as partes animadas pelos troncos nervosos, apresentam-se, no emtanto, dores atrozes e intoleráveis, que só por si podem justa- mente indicar a amputação, como o único meio de evitarem-se accidentes de certa gravidade, e o esgotamento nervoso, que pode ser causa de morte para os feridos. Não é raro manifestarem-se, entre os prin- cipaes phenomenos de taes lesões, movimentos convulsivos, que podem degenerar em verdadeiros espasmos traumáticos, constituindo elementos da maior importância para a producção de estados mórbidos, que se teem tantas vezes confundido com o tetanos. Lesão dos ossos — O comprometimento do esqueleto, em uma ferida por arma cie fogo, é sem- pre uma complicação digna de ser conveniente- mente attendida pelo pratico, quer no tocante ao seu diagnostico, que nem sempre é bem definido e ->-®' 87 °©*<- completo, quer em relação á sua gravidade, que é em extremo variável. Já no exame dos effeitos produzidos pelos pro- jectis sobre os diversos tecidos foram apontadas as principaes variedades relativas a estas lesões: não voltarei, portanto, sobre similhante assumpto. Cumpre agora estudar as alterações funccionaes variadas, e a marcha destas complicações até a occasião em que a cura é attingida, ou o desenlace fatal põe termo aos soffrimentos do ferido. As feridas complicadas de fractura são quasi sem- pre da maior importância clinica, e muitas vezes offerecem indicações urgentes a serem preenchidas. Nestes casos, que são os mais communs, o foco da fractura se communica mais ou menos facilmente com o exterior, os líquidos são escoados para fora, podendo igualmente assomar por entre os bordos da ferida cutânea as extremidades dos fragmentos, ou alguma esquirola óssea, que se tenha deslocado. Nos casos de corrimento de sangue no foco da fractura, ainda quando moderado, longos coalhos se modelam nos vacuolos dos tecidos, e nos interstí- cios musculares. Esta circumstancia favorece em extremo a suppuração, e facilita a emigração do pus á distancia, preparando o momento para formi- dáveis accidentes. As fracturas que complicam as feridas por armas -*«• 88 »®*- de fogo são geralmente comminutivas. O osso se divide em um certo numero de esquirolas, algumas das quaes são soltas no foco da lesão, e representam o papel de corpos estranhos; outras são adherentes. Quando a inflammação se apodera da parte, a presença destes fragmentos ósseos, ordinariamente ponteagudos, mantém nos tecidos ao seu contacto o phenomeno irritativo, podendo-o augmentar de um modo tão notável que as partes circumvizinhas se engorgitam de sangue, e se tumefazem. As dores tornam-se mais intensas, e a gangrena pode sobrevir, principalmente se alguma esquirola tem offendido a artéria ou a veia principal da parte. 0 phenomeno, porém, que mais se accentúa, em taes casos, é a suppuração que envolve e elimina as esquirolas livres, influindo ao mesmo tempo para a separação dos fragmentos ósseos, ainda ad- herentes ás partes molles ou ao osso por bridas fibrosas mais ou menos resistentes. Nas vizinhanças do foco da fractura a inflamma- ção ganha de intensidade mais em certos pontos do que em outros, preferindo as zonas mais ricas de tecido conjunctivo; o pus pode ter origem no centro de cada núcleo inflammatorio, resultando d'ahi di- versos abcessos, que se abrem no canal da ferida e por elle evacuam o seu conteúdo, ou são incisa- dos pelo cirurgião. -+®* 89 «•©-{- Então diversos trajectos fistulosos se formam, e o pus corre das immediações da fractura para o exterior por um certo numero de canaes, que dif- ficilmente se cicatrizam. Quando as alterações nutritivas se estendem á uma porção maior da superfície do osso, a necrose é a conseqüência ordinária ; por quanto, impedida a penetração do sangue no tecido ósseo, este fica privado de nutrição, constituindo-se em seqüestro. Um tão desfavorável estado pode prolongar-se quasi indefinidamente, e em quanto o seqüestro não for eliminado do organismo, a suppuração não cessa, enfraquecendo em extremo o paciente. Este, desacoroçoado da cura, e esgotado pelo soffri- mento, supplica afinal a ablação da parte, como o maior dos benefícios, Um facto como este me foi referido por meu hon- rado collega o Sr. Dr. Freitas, que teve occasião de observar, chamado para intervir com a sua opi- nião. O doente já se achava votado á amputação, pois que após alguns annos de suppuração, em vir- tude de uma ferida do braço, mau grado to dos os meios empregados, jamais foi possivel seccar-se a fonte da abundante suppuração, que lhe havia ex- tenuado consideravelmente as forças. Graças ao tino e perícia do meu collega, a am- putação foi dispensada, e ensaiando-se a resecção -y@o 90 o©-;- da diaphyse do humerus, verificou-se a existência de um longo seqüestro, cuja extracção se tornou por demais fácil, em virtude da incisão praticada ao longo do membro. O resultado desta operação não se fez muito esperar; a suppuração extinguiu-se completamente, e a cicatrização da ferida acom- panhou-se de um estado florescente de saúde. No exame anatômico dos membros, amputados por lesões desta ordem, se encontram alterações tão notáveis das partes molles. como do lado do esque- leto. Os músculos perdem a sua cor e contractili- dade, diminuem consideravelmente de volume pela regressão gordurosa, os vasos se obliteram, e se identificam com os demais tecidos, que todos se transformam em uma substancia de consistência e aspecto lardaceos, constituindo um verdadeiro in- vólucro aos fragmentos ósseos. O Dr. Bustamente, em todas as suas autópsias, diz ter encontrado esta alteração dos tecidos, po- dendo-se, seguramente, attribuir a ella o retarda- mento ou mesmo a impossibilidade da cura em cer- tos casos. Em suas estampas o digno cirurgião do Rio de Janeiro apresenta os diversos especimens de lesões ósseas, encontradas nas suas dissecções, oinittindo completamente o que diz respeito ás partes molles. Yj para sentir-se que um tão favorável ensejo não _*©„ 91 ob- tivesse sido aproveitado, para se adquirir o conhe- cimento completo de taes alterações, de tamanha importância na pratica! Lesão das membranas sorosas — Em todos os tempos tem-se attribuido a estas membranas o triste privilegio das mais graves inflammações. No que respeita ao peritoneo, quando me occupei da symptomatologia das feridas penetrantes do abdô- men, já manifestei o que penso em relação á sua tão notória e tradiccional gravidade; resta-me agora o estudo das lesões relativas ás sorosas, que for- mam as demais cavidades. Deduz-se da observação diária que o compro- mettimento destas membranas não é tão grave, como se afigura á primeira vista. A pleurite, a meningite, vaginalite e as inflammações que se se- guem ás feridas das synoviaes não são realmente tanto para se temer, como se tem pretendido. Na grande maioria dos casos os phenomenos são de- bellados com certa vantagem. Nos ferimentos penetrantes do thorax, em fôrma de um verdadeiro sedenho antero-posterior, tenho raras vezes visto a inflammação da pleura influir no resultado da lesão. As alterações anatômicas resultantes se limitam a bem pouco — a simples adherencias da pleura nos orifícios de entrada ou sahida do projectil. -+©o 92 *@w- Nas lesões do craneo, apezar da penetração de corpos estranhos ou esquirolas, a encephalite, com focos de suppuração, apresenta-se maior nu- mero de vezes do que a inflammação da arachnoi- de, sendo a causa mais freqüente da morte do ferido. Quanto á lesão da vaginal, não parece haver differença do que se passa em relação ás partes molles em geral. A vaginalite é uma complicação de importância duvidosa. O mesmo, entretanto, não se dá em relação ás sorosas articulares, principalmente as que offere- cem maior extensão e prolongamento, favorecendo a retenção do pus, quando a inflammação assim se termina. Nestes casos as arthrites se perpetuam, e as alterações funccionaes attingem tal gravidade que põem a vida em perigo. E' assim que todo ferimento penetrante do joe- lho é considerado essencialmente grave, e para muitos cirurgiões constitue sempre indicação for- mal para a amputação da coxa. Presentemente, porém, as opiniões se teem modificado de um mo- do notável em relação ao caso, e práticos do maior credito já recommendam, muitas vezes, a conser- vação do membro, confiados no emprego dos appa- relhos modelados, que na pratica de lesões simi- lhantes teem realisado as mais importantes curas. Qual a causa, entretanto, de tamanha suscepti- ->«3>o .93 <=©«■?- bilidade destas membranas, anatomicamente tão simples, e destinadas na economia ao mais humilde papel ? Em sua estructura abundam os lymphaticos. Effectivamente, o estudo anatômico das mem- branas sorosas, em geral, demonstra a grande ri- queza lymphatica destas superfícies de secreção, onde as lacunas de Rindfleisch avultam admira- velmente- Esta disposição, apontada pelo celebre professor de Bonn, explicando tão plausivelmente a reabsorpção dos derrarrtens das diversas cavida- des sorosas, dá a razão da penetração da bacterie, espherica ou alongada, por seus movimentos ami- boides na lacuna do vaso absorvente, seu aprisio- namento pelo glóbulo branco do sangue que guarda-a no protoplasma, e o seu transporte, livre ou encarcerado, aos diversos parenchymas. Provindo a gravidade das inflammações destas membranas de similhante circumstancia anatômi- ca, só modernamente bem estudada, é fácil conce- ber-se o poder immenso de que dispõe a cirurgia previdente, evitando as condições indispensáveis ao desenvolvimento dos accidentes respectivos. Lesão das vísceras — As feridas que se acom- panham do compromettimento de uma viscera de- vem ser com justiça consideradas complicadas. Em geral as complicações que se passam no ->■©<• 94 »©*- seio do organismo são tão sérias que podem com- prometter definitivamente certas funcções, e dar até logar á morte. Os desarranjos nestas importan- tes officinas da economia, que se chamam paren- chvmas, privam os tecidos dos princípios indispen- sáveis á sua normalidade physiologica. A degrada- ção funccional ofíerece-se como a conseqüência ne- cessária do facto, e é por isso que a seu turno os órgãos começam a viver uma vida verdadeiramen- te pathologica, perdida para a harmonia da orga- nisação. Algumas destas lesões são immediatamente mortaes, taes como as feridas de certos pontos do eixo encephalo-rachidiano, e as do coração, quando penetram em suas cavidades. Assim também quan- do as lesões são vastas, ou se acompanham de grandes perdas de substancia, que se incompatibi- lisam com a vida. Fora destas circumstancias, a offensa de uma viscera, ainda mesmo de certa importância func- cional, não importa o perdimento da causa, por quanto, muitas vezes, a cura é conseguida. Attestam-no os factos tão numerosos de conser- vação de projectis enkystados na espessura de ór- gãos importantes, podendo dar-se até nas paredes musculosas dos ventriculos cardíacos. No intuito de confirmar a innoxiedade comple- -*s>* 95 -o@x- ta de certos casos, por esta fôrma complicados, lem- brarei o facto observado pelo celebre cirurgião, o fallecido Visconde de Itaúna, cujo nome tem direi- to a um logar muito honroso entre os cirurgiões brazileiros mais notáveis. O ferimento foi produzido por uma bala que pe- netrou na região do hvpochondrio direito, e atra- vessou o fígado completamente. O projectil não foi encontrado na occasião, e nem se fizeram necessá- rias tentativas especiaes, em virtude do excellente estado do paciente, que restabeleceu-se dentro em poucas semanas. Depois de alguns annos, o mesmo indivíduo desta observação apresentava um tumor na região dorsal, em cujo centro reconheceu-se a existência da bala, sendo esta immediatamente extrahida. Commoção e estupor — Esta complicação que provem do abalo experimentado pelos tecidos e ór- gãos, em virtude do choque dos projectis, tem logar sempre na ferida mesma e em suas circumvizinhan- ças, não sendo raro mostrar-se ao longe, compro- mettendo as funcções de um parenchyma impor- tante. Como phenomeno local, a suspensão da circula- ção, a ausência da acção nervosa e o abaixamento de temperatura, constituem a syntliese symptoma- tica das alterações histologicas, de que faço depen- —>«©° 96 •©■*- der a natureza mesma das feridas por armas de fogo. A volta do sangue e do calor pode dar-se ín iotum ou em parte ; porém é possivel igualmente faltar, resultando disto a mortificação immediata da parte. A commoção e o estupor quando se manifes- tam em um órgão da importância do cérebro, dif- ficilmente são recuperadas as suas funcções ; o es- tupor da viscera se continua com a morte. O pró- prio restabelecimento da circulação pode ser fatal ao paciente. A reacção vai alem do permittido pela construcção anatômica da parte; estados con- gestivos da maior gravidade se apresentam, e a morte igualmente não se faz muito esperar. VI ACCIDENTES DAS FERIDAS POR ARMAS DE FOGO jTlndubitavel é a tendência do organismo para @sa harmonia e o equilíbrio de suas funcções. Nesta vasta e importante confederação de órgãos e apparelhos, ligados pelas mais estreitas relações, as alterações anatômicas e funccionaes, em um ponto qualquer da economia, despertam esforços equivalentes do lado do systema intermédio de nu- trição, e por um accrescimo de vitalidade, por uma superactividade nutritiva, a cadeia harmônica, que- brada pelo facto mórbido, se reata, e o equilíbrio physiologico afinal se restabelece. E' isto o que se passa constantemente no seio da organisação, e o que se refere directamente ás —j*®« 98 •©*— ., influencias intimas, que mantém a vida dos tecidos. Além destas, as circumstancias do meio e acção dos circumfusa geram notáveis modificações, sus- ceptíveis de variar, segundo a natureza, o modo de actuar e as propriedades dos agentes externos, que assim como tantas vezes se mostram favoráveis á conservação da autonomia orgânica, em certos estados especiaes dos tecidos, podem influir de um modo em extremo prejudicial ao indivíduo, que perde, com a integridade do invólucro cutâneo, a couraça que o abriga e o defende das injurias das causas externas. E' assim que, quando a pelle e as mucosas se acham intactas, e protegidas pelas camadas epi- dérmica e epithelial, os germens que volteiam na athmosphera, dotados de vida, não poderão influir, ou se apropriar dos elementos que entram na com- posição de nossos tecidos, a menos que possuam uma acção destructiva em relação a este revesti- mento protector. Quando, porém, é interrompida a integridade dos tegumentos e das camadas subcutaneas, o san- gue, se extravasando cios vasos, o systema intermédio de nutrição fica exposto á invasão destes organismos parasitários, capazes de exercer sobre a superfície denudada acções -f@<> 99 c©w- de ordem physica, chimica ou propriamente phy- siologica. Estas devem guardar uma certa relação de de- pendência para com o delineamento anatômico dos diversos germens e suas necessidades nu- tritivas. Assim, os agentes externos podem representar no organismo o papel de simples desorganisadores dos tecidos, destruindo a cohesão dos elementos e rompendo suas reciprocas relações, ou, o que se dá mais commummente, a economia torna-se o pasto de existências parasitárias, que nella procuram o seu mais apropriado e vantajoso alimento. E' então que phenomenos da maior importância se revelam aos meios de observação, de que dispõe a Sciencia. O pequeno germen depositado sobre o terreno mais favorável ao seu desenvolvimento, que, se- gundo Pasteur, basta conter oxygeneo e carbono, cresce e multiplica de um modo rápido e maravi- lhoso, constituindo a mais formidável ameaça ao organismo inteiro. O desenvolvimento destes ger- mens encontra ainda na abundância de um vehiculo apropriado, e uma temperatura entre 25 a 40 graus, circunstancias as mais propicias para a acção zy- motica. Nem mesmo falta o repouso relativo do sangue, que afnue para a parte em virtude da irrita. -KS>« 100 »©-!- ção inflammatoria, a qual por sua mesma influen- cia determina a stase da circulação capillar. Então a cellula-parasitaria, dotada do mesmo movimento dos amibes, encaminha-se na direcção das correntezas de absorpção, que approximam-^a das lacunas lymphaticas, descobertas pelo Profes- sor Rindfleisch, ou quando lhe é vedada esta en- trada por uma circumstancia qualquer dependente do vaso, insinua-se com extrema facilidade nos in- terstícios dos órgãos, nas malhas do tecido conne- ctivo, ou nas redes capillares, determinando mani- festações locaes diversas. E' possivel comprehender-se a ausência de mo- vimento próprio em parte destes germens-fer- mentos, sem prejuizo de suas tendências reprodu- ctoras. A vida então nestas cellulas parasitárias é mais imperfeita, o seu desenvolvimento se faz por simples vegetação. Seria talvez o caso de dizer-se: aqui termina a bacterie para começar a apparecer o spóro, os delineamentos mais simples dos reinos animal e vegetal. Passando-se de tal modo os phenomenos na su- perfície de uma ferida por arma de fogo, ter-se-ha, além das alterações funccionaes relativas á lesão em si mesma e em relação as partes compromettidas poracçoes propriamente physicas, manifestações especiaes, provocadas pela invasão parasitaria, que -»®o 101 o©*- estabelece a mais prejudicial diversão aos actos or- gânicos. Assim, destes processos zymoticos diversos terão de origem estados mórbidos correspondentes, que se tornam verdadeiros accidentes para as feri- das, podendo ser da maior gravidade para o paciente. O exame destas importantíssimas questões, que não duvido denominar fundamentaes, relativa- mente ao estudo das feridas por armas de fogo, é da maior importância na pratica. Graças ao conhecimento dos factos indicados, depois das mais concludentes experiências feitas por Pasteur, e a sua luminosa e lógica applicação devida ao talento eminentemente pratico de J. Gue- rin, presentemente os resultados obtidos na clinica são tão brilhantes, que realmente maravilham ; porque antes das modernas tentativas jamais fo- ram alcançados iguaes. As condições de desenvolvimento dos accidentes á marcha das feridas convém ser cuidadosamente investigadas ; pela interpretação reflectida e ge- nuina dos phenomenos deve o cirurgião attiugir ás suas origens prováveis; porquanto dellas, do mesmo modo que das circunstancias anatômicas das feridas, nascem na pratica cirúrgica indica- ções da mais alta importância, que demandam uma exacta e rigorosa observação. -ysçio 102 «>©*- Durante a guerra que acabou o paiz de sus- tentar, no estrangeiro, mais do que nunca o estu- do de taes condições morbigenas impoz-se, como a necessidade palpitante e maior cia occasião. Foi muito para considerar-se o immenso pre- juízo de vidas, que o Brazil trocou pelas glorias e vantagens colhidas nos campos do Paraguay. Sabe-se, geralmente, que nas grandes guerras, sobretudo quando se torna muito prolongada a sua duração, as perdas mais numerosas dos exér- citos são devidas a moléstias propriamente médi- cas. Nisto a campanha do Paraguay não differiu das demais ; porém, no tocante ao algarismo das feridas por balas, o quadro das observações foi luctuoso. Os Archivos do império não possuem uma esta- tística geral desta guerra ; pois que o seu estudo medico escapou completamente aos poderes com- petentes, cuja attenção se achava desviada para medidas e assumptos mais urgentes. Pode-se, no emtanto, garantir sem receio de er- rar que a mortalidade depois das amputações subiu a mais de 80 %, termo desanimador, quando se compara com os resultados dos tempos de paz. Em virtude dos constantes e repetidos revezes, muitos cirurgiões arripiaram carreira do caminho que tinham traçado diante de seus passos, descren- —í-í®» 103 •©-<— tes das vantagens e das noções adquiridas em sua pratica anterior, e as mais francas indicações co- meçaram a ser habilmente contemporisadas. Seria que o mau êxito de taes operações depen- desse da epocha de sua execução ? Ahi foi que geralmente errou-se o alvo, não se descobrindo a verdadeira causa dos insuccessos. Antes de tudo cumpria estudar-se a influencia de um clima estranho, variável nas diversas locali- dades, e susceptível de transições bruscas de temperatura. Devia ser levada em conta a nutureza do solo, disposto em vastas planícies, e dividido por im- mensos banhados, que em certa epocha favorece a producção das affecções catarrhaes, explicando em todos os tempos, como verdadeiros pântanos que são, a freqüência das febres palustres, sempre ob- servadas nos diversos acampamentos. Os dias quentes e calmosos, fazendo contraste com os ventos conhecidos sob o nome de pampei- ros, exerciam uma acção sobremodo deprimente, e mui poderosamente deviam influir sobre a pro- ducção dos differentes estados mórbidos, constituí- dos em sérios accidentes do traumatismo. Do conjuncto de tão numerosas circunstancias, sob a acção das causas athmosphericas, se origi- navam constituições médicas especiaes, donde ->^>« 104 «©*- muito naturalmente a razão das epidemias, que tão desapiedadamente devastaram os feridos em todos os hospitaes fixos. Como condições pathogenicas individuaes, bas- tavam as praticas abusivas, e as detestáveis cir- cunstancias hygienicas em que se achavam os hos- pitaes, cujo fornecimento não era feito, talvez, de um modo muito escrúpulos o e regular. 0 soldado brazileiro em logar de respirar o ar puro do lar pátrio, sorvia a largos pulmões my- riadas de immundicias, que lhe infeccionavam a organisação; ao envéz da carne sanque nutre, se alimentava de um acervo de podridão que o en- venenava; em logar d'água pura e limpida que se filtra de insuspeitas vertentes, bebia o mais im- mundo e lodacento liquido, sobrecarregado de princípios pútridos, que a custo se desusava pelas margens de um rio, esgoto natural e único de um grande numero de povoados, e de um exercito acampado águas acima. Não havia, pois, necessidade de recorrer-se a outras causas de moléstias para explicar o sacrifí- cio horroroso de vidas, que soffreu o exercito bra- zileiro. Eis as fontes do cholera-morbus, do typhus, da dysenteria, escorbuto e de quantas affecções dizi- maram os nossos bravos soldados; eis, igualmente, ->«®° 105 •©»<- as causas productoras dos desgraçados resultados colhidos em tão larga escala após as operações, em virtude do tetanos, infecção purulenta, infecção pútrida, gangrena, phleugmões diffusos, podridão do hospital, suppurações abundantes e inter- mináveis, erysipelas, hemorrhagias consecuti- vas, etc E' certo que a estatística dos nossos alliados não foi mais favorável. A mortalidade dos feridos ar- gentinos elevou-se ainda mais, acontecendo que dentro em poucos dias depois dos combates fica- vam as enfermarias quasi despovoadas. O caracter tão desfavorável destes resultados se deve attribuir igualmente á insufíiciencia de cuidados e medidas profissionaes. Quando depois do combate de Curupaity, em virtude do grande numero de feridos, alguns cirur- giões brazileiros foram requisitados pelos Argenti- nos, o estado sanitário de suas enfermarias melho- rou consideravelmente, e, graças aos bons serviços prestados, conseguiu-se attenuar o imposto devi- das, que já se fazia tanto sentir sobre o moral dos feridos. Esta circumstancia não demonstra tão somente as conseqüências da falta de pessoal medico habi- litado no exercito argentino, mas principalmente o quanto valem as boas condições hygienicas, em re- ->>©» 106 "©-!- lação ás feridas por armas de fogo e ao resultado das operações. O soldado argentino se achava collocado em con- dições de vida quasi idênticas ás dos nossos solda- dos. A alimentação em nada differia ; era igual- mente da peior qualidade, e ressentia-se das maio- res irregularidades. Os hospitaes, porém, do exercito argentino, mais acanhados, não offereciam condições apropria- das para tal fim. Os feridos, ordinariamente em nu- mero superior ao que poderiam comportar as en- fermarias, eram accumulados em commodos pouco espaçosos, mal arejados e sem as convenientes pro- porções para doentes, que teem tudo a receiar das causas infectantes que os rodeiam. Em assumpto tão importante, e que tão próxi- ma influencia exerce sobre a producção dos acci- dentes das feridas, infelizmente não levamos van- tagens sobre os nossos alliados. Os hospitaes bra- zileiros eram o foco de quanta causa de acciden- tes se podia imaginar. Organisados em galpões, pela maior parte collocados á beira do rio, onde sempre havia restos orgânicos em putrefacção, os hospitaes brazileiros ressentiam-se muito especial- mente da falta de ventilação, da estreiteza de seus commodos e sobretudo do aceio, impossivel de guardar-se naquellas condições. Sua construcção -k3í= 107 ■=<§*- de madeira, não apparelhada, offerecia as maiores vantagens á fixação dos germens parasitários sobre as mais largas superfícies, perpetuando os estados mórbidos, que delles se derivam. O taboado empregado na construcção destes es- tabelecimentos, principalmente o de pinho, é do peior effeito sobre a conservação das medidas hy- gienicas indispensáveis. Elle perpetua um estado cie fermentações mórbidas, tão funesto quanto ir- remediável, diante do qual só resta ao homem da arte cruzar os braços ! Os accidentes que mais comprometteram a vida dos feridos na campanha do Paraguay, nos hospi- taes estabelecidos nas diversas localidades, foram: Io o tetanos, 2o infecção purulenta, 3o infecção pútrida, 4o podridão do hospital, 5o inflammações phleugmonosas, 6o suppurações abundantes e in- exhauriveis, 7o hemorrhagias consecutivas, 8o ery- sipelas, 9o gangrena. Tetanos — Este terrivel accidente, que faz em todas as campanhas, principalmente nos paizes tro- picaes, um tão largo numero de victimas, apresen- ta-se de ordinário nas enfermarias de feridos, de- baixo da fôrma de verdadeiras epidemias. Esta af- fecção desenvolve maior intensidade e freqüência, quando ha accumulo de feridos, amontoados em sa- las pouco espaçosas e mal arejadas, depois das grau- ->©. 108 *©*- des batalhas perdidas, e finalmente quando o cura- tivo falta nas occasiões convenientes, pela insuffi- ciencia do pessoal medico. Ha epochas em que este accidente faz os maiores estragos; estas epochas coincidem com as calma- rias diurnas em seguida ao frio humido das noi- tes. A moléstia então mostra-se galopanie, e pode matar em poucas horas. Em Comentes este accidente foi o que mais cei- fou os feridos brazileiros, sobre tudo a gente de cor preta, que não offerece resistência á acção do fer- mento mórbido. Quasi sempre o tetanos se apresenta entre o 3o e o 10° dia, raras vezes mais tarde, e então se ob- servam constantemente perturbações do lado da fe- rida e a ulceração das cicatrizes, quando, por ven- tura, o ferimento já se acha em via de cicatrização, Sobrevem, maior numero de vezes, este accidente á marcha das feridas complicadas de fractura, princi- palmente quando delia resultam esquirolas, que se cravam em algum cordão nervoso, ou quando a lesão é devida á pressão do próprio projectil ou de algum outro corpo estranho demorado na feri- da, Não é, entretanto, essencial esta circumstancia; pois que ainda depois de removida a causa da im- pressão irritativa, pela extracção do corpo estra- -*®« 109 »©-<- nho ou pela amputação, o accidente não desappare- ce, nem é evitado. Nos ferimentos complicados de lesão dos ner- vos, ás dores que já foram apontadas, como a principal manifestação da offensa nervosa, seguem- se espasmos traumáticos, que podem acompanhar- se de rigidez tetanica. Esta circumstancia, cum- pre confessar, não é facilmente encontrada na pra- tica, onde, ao contrario, se vê o tetanos começar pela rigidez muscular, representada em sua phase inicial pelo thrismus. Isto de algum modo conduz á confirmação do que a Sciencia reconhece na observação clinica quotidiana, isto é, que o tetanos não pode ser con- siderado uma simples exageração do poder excito- motriz da medulla, como quer a eschola physiolo- gica, e á sua frente Brown-Sequard, Verneuil, etc. Ninguém, certamente, contestará o facto de tal exageração motriz em si mesmo, mas a observação attenta dos phenomenos mórbidos, e mais do que tudo as noções que reSültâm da Pathologia experi- mental, nos levam ao resultado, que o bom senso já nos devia fazer prever, e é — que similhante es- tado physio-pathològico não deve e nem pode ser considerado causa de moléstia, porém simples ef- feito de uma influencia estranha, que actua no sentido de levantar o estimulo da medulla. -K3)° 110 •©*- O conhecimento desta causa, que não pode dei- xar de ser externa, quem seriamente ligará á sim- ples picada de um nervo ou á sua dilaceração ? Taes lesões não passarão de simples cireum- stancias, que poderão elevar apenas o nivel de in- tensidade dos phenomenos mórbidos. Como já tive occasião de manifestar-me em minhas Conferências de Clinica cirúrgica, publi- cadas em 1871, acredito que o estado protopathico desta affecção é o das septicemias em geral, varian- do apenas em relação ao gênero parasitário, e a in- tensidade de seu poder zymotico. Estas previsões nascem francamente da observação á cabeceira do doente, principalmente nos casos chronicos, em que a moléstia pode ser maior numero de vezes de- bellada. A acção medicamentosa é então capaz de modificar por tal fôrma o caracter do accidente traumático, que se consegue dar um banho a estes doentes, e dobrarem-se todas as articulações. Isto, denotando o poder therapeutico sobre o phenome- no da exageração excito-motriz, faz descobrir no painel mórbido um fundo de cores mais carrega- das, que continua sempre grave e tenebroso. A melhora é então apparente ; cessa, logo que tem desvanecido a acção medicamentosa que a produziu. Eu tenho observado similhantes resultados -K§» 111 *&*- após o emprego do chloral, que pouco depois de sua descoberta, ao tempo que era ensaiado pelo professor Verneuil em Paris, foi por mim experi- mentado com as maiores vantagens. Para demonstração desta verdade bastar-rae-ha a publicação da seguinte observação, que não deve ser estranha a um dos meus competidores neste concurso, por que foi doente que passou de suas mãos para ser por mim curado. Sérgio, de cor escura, tendo 15 a 1G annos de idade, escravo, veio do centro consignado á casa Moreira e Irmãos, para ser vendido. Em principio de Junho de 1870 deu uma queda de certa altura, e esmagou o pequeno dedo da mão esquerda. Vis- to e examinado o paciente pelo Dr. Pacifico, este entendeu dever tirar a ultima phalange do mesmo dedo, sem se lembrar de deixar tecidos que cobris- sem a extremidade óssea. Dois dias depois foi que o meu collega reconheceu que a desarticulação devia ter sido feita mais acima; porém en- tão, em logar de uma nova operação no articulo superior, limitou-se are:-eccar a ponta exuberante com uma osteotomo. Esta secção foi custosa, os tecidos por mais de uma vez foram irritados pela ponta do instru- mento, resultando disto dores muito notáveis, que o doente, ainda muitas horas depois, aceusava, -*®. 112 °@*~ A 11 do mesmo mez, dois dias depois deste in- cidente, fui chamado pelo Sr. José Pinto da Silva Moreira, que nesta epocha morava no largo de Na- zareth, para medicar o paciente. No dia immediato ao da irritação experimentada na ferida, apresen- tou-se o tetanos, revelado pelo thrismus e espas- mos intermittentes, os quaes mostravam-se em me- nores intervallos, quando o doente fallava muito, apparecendo então suores profusos e lipothymias. Na occasião do meu exame, a moléstia se achava perfeitamente caracterisada, já havia opisthotonos, rigidez dos músculos abdominaes, dor epigastrica, impossibilidade de ampliação thoraxica, que com outros phenomenos denotavam o comprometti- mento do diaphragma. Considerei o caso dos mais graves, e não dissi- mulei ao meu cliente o perigo immenso que corria o doente. Não havendo ainda no mercado hydrato de chloral em substancia, empreguei o xarope de Cha- mouin, que, por indicação minha, a Pharmacia Camará mandara vir. Foi mediante esta prepara- ção que consegui debellar a moléstia, principiando por tornal-a chronica. A cura foi completa em pouco mais de 30 dias. Em mais dois casos outros foi empregado o hy- drato de chloral, em poção, na dose diária e inalte- -*®° 113 »@W- ravel de 8 a 12 grammas. Em summa, de- pois da descoberta desta substancia por Otto Liebreich, como meio anesthesico, nenhum doente ainda perdi de tetanos em minha clinica particular, sendo para notar que jamais tenha conseguido o effeito hypnotico. Entre as causas que predispõem ao desenvolvi- mento de epidemias similhantes, nas enfermarias de feridos, apontam-se as mudanças atmosphericas rá- pidas, em relação á temperatura e ás correntezas do ar. Isto deu-se realmente nos diversos hospitaes de Corrientes e do Paraguay ; mas, porque razão a raridade quasi extrema deste accidente em Monti- vidéo, Buenos-Ayres, e no Rio de Janeiro, onde tivemos numerosos serviços de feridos, e cujas va- riações de temperatura são aliás notáveis ? Nos cli- mas frios, em que estas mudanças são tão ásperas, similhante accidente é relativamente raro, ao passo que a infecção purulenta se mostra com mais freqüência. Esta indicação etiologica parece disposta so- mente a servir á doutrina que considera o tetanos uma affecção de inclole rheumatismal. Contra taes presumpçõcs, porém, o que é bem averiguado, e resulta da observação de todos os práticos, principiando pelo celebre Larrey, no Egy- pto, é que as condições principaes da producção -*§>• 114 »©-i- do tetanos são a coexistência do calor e da humi- dade. Estas condições representam exactamente a opportuniclade da reproducção dos microzoarios e dos microspóros, e, portanto, regulam o momen- to das fermentações. O ambiente que offerece um conjuncto de cir- cumstancias zymogenas tão favorável, contendo igualmente os germens-fermentos, que volteiam na atmosphera, e que com extrema facilidade podem ser depositados na superfície de uma ferida, porque razão não hade realisar nella uma verda- deira fermentação mórbida? A coincidência de taes circunstancias externas e individuaes, com as ma- nifestações insólitas do tetanos, provoca seriamente a attenção dos espiritos pensadores. Se as vistas dos sábios se tem volvido, nos tem- pos que correm, para o estudo das feridas em todas as suas phases, acompanhando com o microscópio as suas diversas manifestações physio-pathologicas, afim de surprehenderem os germens da infecção purulenta na occasião mesma de sua penetração na arvore circulatória; porque motivo não se tem empregado os mesmos processos, as mesmas inves- gações, em relação ao tetanos ? Será porque o sys- tema nervoso esteja destinado a ser o martyrio dos sábios ? Não o creio. -*©« 115 eé*- Eu penso, ao contrario, que a respeito da patho- genia desta affecção a Sciencia não tardará a se apoderar dos factos os mais curiosos e importantes. As pesquizas e investigações histologicas virão brevemente em apoio das previsões, que me ins- piram a observação clinica e os estudos experi- mentaes. 0 hydrato de chloral está destinado a represen- tar, em relação ao conhecimento da pathogenia do tetanos, o mesmo papel que tem. representado a atropina nos progressos da ophthalmologia mo- derna. Infecção purulenta — O estado mórbido que sobrevem a uma ferida em plena suppuração, dando logar a phenomenos de irritação e puru- lencia em órgãos distantes, se tem filiado ao grupo das septicemias cirúrgicas. 0 professor Gosselin, collocado á frente da es- chola franceza, avara e zelosa de suas conquistas e de suas glorias, pretende haver sido o primeiro que comprehendeu o facto debaixo de vistas tão precisas, quanto fecundas para a pratica. Na clinica, porém, o estado mórbido a que me refiro não é tão simples como parece. E' assim que nesta familia pathologica muitas vezes observam-se, em certos focos purulentos, verdadeiras decomposições, acompanhadas de ai- —i-«®° 110 «©■<— terações da maior gravidade local, e uma dys- crasia compromettedora das funcções, por que se revelam os órgãos mais importantes da economia, que formam, por assim dizer, o centro de relações da grande republica individual. Ahi realmente se verifica a justiça e a proprie- dade do termo — septicemia. Então se poderá to- lerar a celebre expressão de Davaine—putrefacção do sangue; porém, onde a identidade do phenome- no mórbido com o que até hoje se conhece sob o nome de infecção purulenta? Simplesmente no facto da procedência do elemento morbigeno, que vem igualmente de fora, provocando, na superfície da ferida, processos especiaes da natureza das fer- mentações, e dalii o seu desenvolvimento e mul- tiplicação. No mais, as differenças devem ser bem pronunciadas, quer em relação á natureza do ger- men parasitário, quer no tocante ao modo de pene- tração na arvore circulatória, e finalmente quanto aos órgãos onde se repercutem as alterações mór- bidas. Reconhecidos, como se acham, similhantes ger- mens, que se alimentam de princípios que só nas feridas encontram, pelos mais distinetos e nume- rosos observadores, será a cellula-fermento da in- fecção purulenta igual á dos demais estados septi- cemicos ? -x®° 117 o©*- Como quer que sejam, bacteries, vibriões ou spôros, as differenças de propriedades, previstas pela observação clinica, correspondem a caracte- res microscópicos variados. E' assim que Birch- Hirschfeld dá para a infecção purulenta a bacterie espherica ou o micrococcus, e para as verdadeiras septicemias as bacteries termo e as demais varie- dades da classificação de Cohn. Effectivamente, um germen-fermento, provindo do ar que reconhece por vehiculo, é levado á su- perfície da ferida, onde se realisa o processo zy- mogeno, que o reproduz e multiplica de um modo maravilhoso. Estes germens podem ser directamente recebi- dos da atmosphera das enfermarias, na occasião do curativo, em que se põe a ferida a descoberto, ou conduzidos pelas ataduras e compressas, pom- madas, unguentos, e líquidos diversos, e até pelo próprio cirurgião e ajudantes que fazem o curativo respectivo. No destino que aguardam estas gerações zymo- genas, encontram-se igualmente as differenças dos estados mórbidos. Na infecção purulenta, a pe- quena bacterie, dotada de movimento próprio, se dirige ás lacunas de Rindfleisch, do modo já aci- ma mencionado. Ahi chegando, sua presença, inof- fensiva ao glóbulo branco, permitte a sua approxi- -XS>o 118 <>@X- mação deste glóbulo, que com a maior facilidade e rapidez inclue o diminuto germen em seu protoplas- ma, transportando-o ao longe nos órgãos e paren- chymas, principalmente nos pulmões, onde o orga- nismo-fermento encontra na maior abundância os princípios indispensáveis para sua nova evolu- ção e multiplicação, dando logar aos infarctos, que acabam por ser verdadeiros focos de suppuração. Eis reduzido ás mais simples fôrmas, e facilmen- te ao alcance de todas as intelligencias, o facto até hoje tão nebuloso dos abscessos metastaticos. O mesmo se dá, com quanto em escala menor, a respeito do fígado, rins, baço, cérebro e órgãos outros, atravessados por sangue rico de oxygeneo, e portanto favorável ás novas producções pa- rasitárias. Antigamente se suppunha ser este estado mór- bido antes um accidente da suppuração, que da fe- rida mesma. Mas o que é a suppuração, se não o accidente mais simples do traumatismo ? O que será o glóbulo de pus, se não um glóbulo branco de sangue ou uma cellula embryonaria, em cujo proto- plasma se acham inclusos germens, que teem per- vertido as suas funcções próprias, e os tem tornado elementos perdidos para o organismo ? Em logar mais conveniente terei occasião de produzir as pro- vas que o assumpto exige. ->®» 119 ♦©-!- A infecção purulenta não é tão freqüente na marcha das feridas por armas de fogo, como á pri- meira vista se pode acreditar. E' certo que na guerra franco-prussiana foi ella a causa do maior numero de mortes, e figurou determinando revezes operatorios na mais larga escala. Este accidente parece ser mais freqüente nos paizes frios. No Paraguay não foram numerosos os factos deste gênero observados. Raras vezes tive occasião de encontrar a infecção purulenta nos casos em que não se tinha recorrido á intervenção operatoria. O mesmo se deprehende da leitura do trabalho do Dr. Carlos Frederico, e é asseverado por quantos praticaram naquella immensa eschola. O meu amigo Dr. J. Damazio, um dos cirur- giões que mais feridos teve a seu cuidado, e mais operações praticou durante a campanha do Para- guay, pratico de consummada perícia e sagacidade, confirma a raridade deste accidente, e attribue o fa- cto, além cias circumstancias climatericas, á defeza do organismo, realisacla nos primeiros dias pela es- pécie de couraça secca, em fôrma de eschara, que reveste internamente o canal das feridas por armas de fogo contra as injurias do ar atmospherico. Eu subscrevo sem restricções a opinião deste distincto cirurgião, que se acha em perfeita har- monia com a doutrina exposta nesta these, dou.-. -;-©• 120 »©•!- trina que explica, com a maior clareza e lucidez, phenomenos que até o presente não tinham podido ser bem comprehendidos. A infecção purulenta pode surprender o ferido em qualquer phase, á que tenham attingido as suas lesões; porém o facto é mais vezes observado depois que as partes desorganisadas teem sido eliminadas, e que a suppuração torna-se muito abundante. Ella é annunciada por um calefrio intenso, que se acompanha quasi sempre de bate- dura de dentes, e que corresponde a perturbações nervosas, desafiadas pela penetração do fermento mórbido na circulação. Estas perturbações são se- guidas de um exaggero das combustões intersti- ciaes; a febre se accende no organismo, e a tempe- ratura se eleva de um modo rápido e surprendente. O quadro thermometrico que se acha annexo a esta these demonstra o facto apontado, e ainda mais a promptidão com que o sulfato de quinina, em alta dose, deu logar á defervescéncia mórbida. No doen- te a que se refere este quadro eu havia praticado a amputação da perna; a suppuração não era abun- dante na occasião em que se deu o accidente. Um facto digno de attenção nesta moléstia é o desapparecimendo instantâneo da suppuração; a superfície da ferida fica secca. Este phenomeno, em que se fundavam os cirurgiões antigos para ->*@» 121 •><&*- sustentarem o facto da entrada do pus em sub- stancia na torrente circulatória, serve perfeita- mente á doutrina das fermentações traumáticas, que começa a adquirir direito de domicilio na Sciencia. Os symptomas do lado do apparelho respirató- rio attingem um certo grau de intensidade, que já tem illudido ás vistas diagnosticas. Isto já se deu com o Dr. P. Caldas, cirurgião do Hospital da Caridade desta cidade, na occasião em que um seu doente, tocado pela infecção purulenta, serviu de foco de contagio para a enfermaria inteira. O meu collega acreditava com a maior simplicidade que a moléstia em questão não era mais do que uma pneumonia. A ingenuidade deste cirurgião era tanto mais digna de admirar-se, quanto o meu operado de que acima fallei, collocado em um leito fronteiro, contrahiu a infecção purulenta dois dias antes da morte do doente, que foi julgado sim- ples victima de uma pneumonia! Infecção pútrida — Este accidente é inques- tionavelmente muito mais freqüente nos serviços das enfermarias de feridos. As anfractuosidades das superfícies de suppuração, quer em relação ás partes molles, quer aos ossos, facilitam a pro- ducção das fermentações traumáticas, que attin- o-em o caracter de verdadeira putrefacção. -*§><> 122 «©*- O germen-fermento da infecção pútrida é diffe- rente do da infecção purulenta. Elle possue uma acção eminentemente destruidora dos glóbulos brancos do sangue, onde penetram livres, dando logar a uma verdadeira septicemia, no rigor da expressão. O estado do sangue que resulta desta infecção é incompatível com as funcções physiolo- gicas, desviando o organismo da harmonia de acção que constitue a vida. O cheiro especial que se sente nas enfermarias de feridas accusa de um modo irrefragavel a exis- tência deste accidente, pelos productos da fermen- tação, de que se satura a atmosphera, indo impres- sionar o olfacto dos que as visitam. A infecção pútrida adquire um grau notável de freqüência nos casos em que as fracturas complica- das se acompanham de osteo-myelite. Os mais dis- tinctos cirurgiões se acham accordes, em relação a esta ultima circumstancia, que offerece um apoio completo ás minhas opiniões; pois que, não se dando a retracção dos vasos da medulla e dos ca- naliculos ósseos, a penetração dos organismos- fermentos na torrente circulatória se realisa com extrema facilidade. Podridão do hospital — Esta affecção, de na- tureza essencialmente gangrenosa, é as vezes muito cominum na marcha do tratamento das fé- -xs» 123 <=©-<- ridas por armas de fogo. Nos hospitaes do Rio da Prata a sua freqüência foi tamanha, que se pode affirmar que, por si só, este accidente fez mais vic- timas do que todos os outros reunidos. O meu distincto collega, o Sr. Dr. Rozendo Guimarães, que prestou os melhores serviços no Hospital de Monte vidéo, confirma a freqüência dos casos de podridão do hospital em seus numerosos doentes. Este cirurgião refere que, nas raras occa- siões em que não havia algum caso desta affecção em suas enfermarias, bastava um leve augmento de temperatura atmospherica, denotada por chuva fina, para que de momento quasi todas as feridas se cobrissem de uma camada gangrenosa, ás vezes espessa, acompanhada de phenomenos de certa gravidade para os feridos. Muitas vezes cicatrizes, que pareciam quasi de- finitivamente constituídas, se abriam, e a ulceração se alargava de um modo surprendente, destruindo os tecidos, e até disseccando os músculos e os ossos. Quando este accidente pode ser com vantagem combatido, e que na ferida reapparecem os botões carnosos, a cura se retarda consideravelmente. O simples aspecto da moléstia revela franca- mente a origem zymotica do processo, em virtude do qual ella se desenvolve nas feridas. Na super- ->*?-)• 124 '©-(- ficie traumática, ou sobre um ponto qualquer da cicatriz, em que falte a epiderme, se depositam os germens-fermentos, de Índole e origem especiaes, que, graças ás condições favoráveis do meio, se de- senvolvem e se reproduzem por uma actividade prodigiosa, tendendo a propagar-se antes em su- perfície do que em profundidade. O seu princi- pal papel é destruir os tecidos, se apropriando de seus elementos libertados por uma acção chimica rápida. Em virtude desta propriedade, a sua pene- tração no sangue difficilmente se realisa, por falta de vehiculo, que não seja promptamente desorga- nisado, do mesmo modo que as boccas absorventes. Quando manifestações se apresentam do lado do estado geral, o que é raro, o theatro de taes phe- nomenos é a arvore circulatória, e então o proces- so mórbido se parece muito com o das infecções pútridas. O germen parasitário deste accidente, com a maior verosimilhança, tira sua origem do reino vegetal. Inflammações phleugmonosas — O terrível accidente que tantas vezes desvia de sua marcha para a cicatrização as feridas por armas de fogo não é certamente a simples reacção inflammatoria, tão fugaz e sempre tão moderada, que se segue, algumas horas depois, ao ferimento. -♦o» 125 *©-<— Este accidente tem um cunho especial de gra- vidade, cujo valor deve-se procurar nas circun- stancias anatômicas e nos desarranjos locaes. A causa phlogogena não se acha nos tecidos coin- promettidos, nem lhes é transmittida pela circula- ção; é um principio que tem sua origem fora do organismo. Elle cresce e se aperfeiçoa na superficie da ferida, alimentando-se de princípios que para ella affluem, e novas gerações de organismos iguaes se produzem. Estes organismos assim con- stituídos, em fôrma de verdadeira infecção, cami- nham de preferencia para o tecido conjunctivo, que entra na contextura dos órgãos, imprimindo- lhes modificações fundadas em sua nutrição. A irritação produzida dá logar ao engorgita- mento e ao infarte da parte, que, independente de qualquer outra circumstancia accessoria, é capaz de occasionar phenomenos da ordem da gangrena, estabelecendo focos de líquidos pútridos, que ge- ram verdadeiras septicemias. Outras vezes o facto se passa de um modo pu- ramente mecânico. As partes engorgitadas de sangue, e por effíito disto tumefeitas, encontram na disposição especial dos planos aponevroticos condições que determinam o seu afogamento. A este estado Legouest denomina estrangulamento, e considera como um accidente á parte. A volta do —>«©» 126 "©x— sangue venoso não se pode effectuar, os phenome- nos nutritivos se suspendem, e com elles a vitali- dade se perde para os tecidos, resultando d'ahi a in- terrupção das relações do território orgânico necro- sado com o resto do organismo. A's vezes apresenta-se a inflammação phleu- gmonosa nos primeiros dias que se seguem ao fe- rimento. O ferido chega da ambulância em condi- ções regulares, de ordinário ainda no periodo de es- tupor. Quando já a enfermaria se acha infec- cionada, de um para outro dia, tendo-se deixado o paciente tranquillo e entregue á esperança de pró- xima cicatrização, encontra-se-o febricitante, accu- sando dores intensas nas feridas e tensão dos teci- dos, mostrando tumefacção e vermelhidão de uma larga zona, que circumscreve o centro da lesão. Ha augmento notável de peso, e elevação pro- nunciada da temperatura local. As conseqüências deste accidente nem sempre podem ser previstas, porque se em grande nume- ro de casos os phenomenos cedem aos meios racio- nalmente empregados, não raras vezes são capazes de produzir a morte por perturbações funccionaes profundas. Suppurações abundantes—A suppuração em sua mais simples manifestação representa um accidente das feridas, devido á acção de germens ->"©• 127 e©*- atmosphericos, que impedem a organisação defini- tiva das cellulas embryonarias em tecido de cicatriz. Estas cellulas incluem granulações estranhas, resultando dahi ficarem perdidas para o organismo, constituindo-se em glóbulos de pus. As suppurações abundantes e inexhauriveis se originam ordinariamente de inflammações phleu- gmonosas intensas. Elias podem prolongar-se quasi indefinidamente, dando logar ao enfraqueci- mento do doente, que pode succumbir a tão gran- des perdas. Este accidente foi muito commum em todos os hospitaes, tanto do Paraguay e de Comentes, como de Monte vidéo, Buenos-Ayres e Rio de Janeiro. Hemorrhagias consecutivas — Estas hemor- rhagias dependem ordinariamente cie estados mór- bidos especiaes das feridas por armas de fogo. Elias teem por causa ou o escorbuto ou uma alteração dos tecidos, que se extende até as membranas dos vasos, desorganisando-os, como se vê na podri- dão do hospital, na gangrena, na infecção pú- trida, etc. As hemorrhagias consecutivas foram muito fre- qüentes em todos os serviços militares, durante a campanha do Paraguay, principalmente na esqua- dra onde a dyscrasia escorbutica muito notável foi por sua extensa manifestação. ->-©• 128 •«*- As perdas sanguineas se apresentam indiferen- temente nas feridas por armas de fogo, e no coto dos membros amputados. Elias se repetem com certa freqüência, prejudicando consideravelmente as forças reparadoras da economia, retardando o trabalho da cicatrização, e, o que ainda é peior, levando o paciente ao mais deplorável estado de abatimento e de marasmo. As lesões locaes podem offerecer um aspecto em extremo desagradável, principalmente se a gan- grena se tem apoderado da ferida, que se reduz a uma chaga verdadeiramente crateriforme. Quando o estado do ferido chega a tal ponto, os agentes hemostaticos não valem grande cousa, e nem mesmo faz disto excepção a ligadura, que então applicada se faz acompanhar igualmente de he- morrhagias consecutivas, no logar mesmo da cons- tricção do vaso. Erysipelas — Os ferimentos por armas de fogo dão logar algumas vezes a erysipelas, que podem limitar-se ás circumvizinhanças da ferida, ou ad- quirir o caracter ambulante. Como os demais ac- cidentes, a sua causa parece consistir na influencia de germens-fermentos, sobre a superficie traumá- tica, dando origem a processos zymoticos. A erysipela, pois, não faz excepção aos demais accidentes das feridas, que teem sido enumerados. -X3>° 129 °«©« 130 •©■!- Os numerosos casos de gangrena de causa espe- cifica não encontram explicação racional em qual- quer outra circumstancia etiologica. VII PESQUIZAS DIAGNOSTICAS tovíK s questões que se referem a esta parte do es- /J^tudo das feridas por armas de fogo são mais importantes do que parecem á primeira vista. No circulo das pesquizas diagnosticas se acham comprehendidas praticas, que por si, e ainda me- lhor por seus resultados, podem ser consideradas como operações preliminares ao tratamento dos fe- ridos. Estas praticas são empregadas para o reco- nhecimento dos corpos estranhos, e determinação da substancia de (pie elles se compõem. Antes, porém, de qualquer espécie de tentativas, ainda mesmo as mais innocentes, cumpre ao cirur- o-ião, incumbido de um ferido desta ordem, indagar ->«®° 132 «xsx- e pôr em prova os commemorativos. Ordinaria- mente os doentes offerecem-nos os melhores e mais luminosos esclarecimentos, a respeito do modo por que teve logar o seu ferimento, e das eircumstan- cias que o rodearam. Tendo o cirurgião diante de si um grande nu- mero de feridos, o tempo torna-se insuffíciente para investigações pacientes, no sentido de reconhecer- se a existência de corpos estranhos. Chegando-se á cabeceira do ferido, a primeira pergunta refere- se á sede da lesão, seguindo-se muito naturalmen- te uma outra relativa á existência do projectil nos tecidos divididos. Esta conducta é sempre das maiores vantagens para o tratamento ulterior, e até certo ponto evita incertezas e mais do que tudo a supervenção de accidentes, a que ficam expostas as feridas que não comportam o curativo por occlusão. Na occasião mesma do ferimento, na ambulância ou no hospital de sangue, as partes se acham ainda em estado de estupor, seu volume e relações são normaes, as pesquizas dirigidas pelo observador são mais tole- radas, e coroadas ordinariamente do melhor êxito; porquanto por ellas se pode justamente avaliar o estado dos tecidos, e attingir-se mais facilmente a bala. A extracção desta é em taes condições da mais simples pratica ; porque de ordinário bastam -:•©• 133 <■§*- incísoes superficiaes. Quando mostra-se espessa a camada de tecidos a dividir-se, o pratico é guiado pelos conhecimentos anatômicos de que dispõe, e se elles são dignos de sua importante missão — nada ha a receiar-se. Muitas vezes bate-se em pesquizas todo o canal da ferida e as partes circumvizinhas, sempre in- utilmente, não obstante haver quasi completa cer- teza de que o projectil não teve sahida na occasião do tiro, nem cahiu no transporte do ferido ou en- volvido nas roupas, no momento de descobrir-se a parte offendida. O paciente então continua a afnrmar a existência da bala na ferida, chamando a attenção do cirurgião para pontos mais ou me- nos distantes delia, onde muitas vezes a apalpação reconhece a dureza e mobilidade do projectil, em um plano raras vezes profundo. Em certas circunstancias pouco communs, fe- lizmente, abala, se achando solidamente fixada nos planos ósseos e aponevroticos, a simples inspecção, ou a exploração por meio do dedo do pratico, não communica ao seu juizo diagnostico o grau indis- pensável de certeza. Isto acontece algumas vezes, quando, nos primeiros momentos depois do feri- mento a exploração das partes offendidas tem dei- xado de ser feita por negligencia, ou por temor. A reacção inflammatoria então se manifesta, a par- -x@o 134 °®»<- te se tumefaz notavelmente, torna-se dolorosa, o projectil relativamente se aprofunda mais, a explo- ração é, portanto, um trabalho difíicil, de resulta- dos incertos, e sempre dolorosa cm extremo para o paciente, não dispensando quasi nunca os desbri- damentos, que podem dar azo a verdadeiros acci- dentes. Destas considerações se deprehendem a neces- sidade e as vantagens que resultam da exploração immediata, que o Dr. Legouest aconselha como medida geral, exceptuando casos muito raros, em que a ferida penetra certas cavidades, cujo accesso ao dedo explorador é impossivel, e aos instrumen- tos perigoso. A exploração, ainda nas feridas simples, offerece as maiores vantagens; porque dá noção exacta do comprime: to do trajecto traumático e de sua di- recção, cuja influencia sobre o tratamento é das mais manifestas. Demais cila indica ao pratico a natureza cb^ meios, de que deve elle aprovei- tar-se. Acontece algumas vezes que, apezar das mais minuciosas pesqmzas, não se consegue descobrir o corpo estranho. O dedo explorador nada toca que pareça metallico, os instrumentos introduzidos mais longe revelam simplesmente superfícies mais ou menos duras e resistentes, sonoras ao toque -*§• 135 o@4- do estylete, sem que dalii se possa colher um signal de certeza da existência do corpo estranho. Para conjuncturas tão diffíceis teem sido lem- bradas numerosas sondas, entre as quaes se as- signalam a cie Lecomte e o estylete de Nelaton, tão celebre depois que serviu para descobrir na ferida de Garibaldi a existência da bala. O Dr. Legouest se serve simplesmente de um cachimbo, cuja extremidade fina, friccionada de encontro ao corpo suspeito, se tinge de preto, do mesmo modo que acontece ao estylete de Nelaton, cuja extremidade exploradora é de'massa de por- celana não vidrada. Estes diversos instrumentos, como se deprehen- de de suas propriedades, são somente sensiveis á presença das balas de chumbo. Nas numerosíssi- mas occasiões em que o projectil é de ferro fundi- do, ou de outro qualquer metal, o estylete de Ne- laton e o cachimbo de Legouest não prestam ao juízo diagnostico o menor esclarecimento. Diversos apparelhos electro-chimicos, e electro- imans, teem sido empregados com o fim de reco- nhecer-se toda espécie de metaes. O apparelho de Trouvé, adaptado á clinica por suas reduzidas di- mensões, tem fornecido alguns resultados bri- lhantes nas mãos do professor Gosselin, que o julga da maior sensibilidade. O estylete explorador se ->^>» 136 e©W— abriga em uma canula, que tem previamente attin- gido o corpo suspeito, e por meio delia é posto em contacto com este; o estylete termina-se por duas pontas, convenientemente separadas uma da outra, correspondendo-se com uma pilha de sulfato de mercúrio. Quando as pontas exploradoras tocam o projectil, o circuito se fecha, e o tremedor, agitado por um iman, annuncia a natureza metallica do cor- do, com que foi posto em contacto o instrumento. Infelizmente, este meio tão engenhoso de inves- tigação das balas poucas applicações pode ter na pratica ; mas, nos casos em que concorrem as cir- cunstancias favoráveis ao êxito das pesquizas, é realmente superior a quantos possue a Sciencia. Deneux lembrou-se do emprego de diversos rea- gentes, que variam conforme a natureza do metal. Elle faz uso de uma mecha de fios molhada em água acidulada com ácido nitrico ou com ácido acetico. Após alguns minutos de contacto com o corpo suspeito, põe-se ella em communicação com uma solução de iodureto de potássio, ou chromato de potassa, para reconhecer-se a existência de chumbo, e com o ammoniaco liquido para desco- brir-se o cobre. No primeiro caso, quando existe o corpo estranho em questão, apresenta-se a cor amarella que caracterisa o iodureto de chumbo; no segundo caso, a cor especial dos saes de cobre. —K§" 137 «@-i— Para reconhecer-se o ferro, será empregado o cyanureto de potássio e de ferro, levemente aeidu- lado com ácido acetico, que em contacto com o projectil adquire uma cor azul muito fechada. Legouest, na qualidade de relator da Academia Imperial de Medicina, procurando pôr em prova as reacções apontadas, apenas conseguiu verificar a que se refere ao chumbo. Nas outras tentativas o resultado foi negativo. Depois de algumas experiências muito conclu- dentes, eu penso que o galvcmo-caustico thermico é o meio mais precioso para o reconhecimento dos diversos metaes, que entram na composição das balas. O principio em que se funda a applicação diagnostica é a boa conductibilidade destes corpos para o calorico. Dois fios de platina, de pequeno diâmetro, separados convenientemente um do outro, são conduzidos ao encontro do corpo suspeito, protegidos por uma sonda de gomma elástica, cuja extremidade trancada é levada previamente con- tra o corpo que se deseja reconhecer. Logo que os fios de platina se põem em contacto com o projectil, este se apodera dos fluidos com uma rapidez extraordinária, e a sensação de calor se revela em uma larga superficie, sendo accusada pelo paciente ainda algum tempo depois de retira- dos da ferida os fios de platina. Quando, ao con- ->©» 138 •©*- trario, não se trata de um corpo metallico, a caute- rização não se realisa, ou faz-se de um modo apenas sensivel, por quanto o circuito não se fecha por meio de substancia metallica, e o calor não se produz. Este meio de exploração pode acompanhar-se de vantagens therapeuticas reaes, quando a tempe- ratura do projectil é algum tanto elevada, produ- zindo a desorganisação dos tecidos em que muitas vezes se acha encravada a bala, o que dispõe as condições mais favoráveis para a sua extracção, isto é, suppuração e mobilidade. Desta sorte pode- rão ser dispensadas operações, que não são despidas de gravidade, como a trepanação, commummente empregadas para a extracção de projectis encravados nos ossos, e desbridamentos que podem ser muito para receiar-se pela abundância de vasos na parte, dando ás vezes muito sangue ás incisões, e espe- cialmente pelo perigo dos accidentes. Similhante pratica é completamente innoxia, e em extremo fácil de ser empregada ; bastará ao pratico o habito de trabalhar com apparelhos des- ta ordem. Quanto á queimadura circumscripta que se produz, o que ha, por ventura, a temer-se ? Muito menos que a acção do óleo effervescente em- pregado até bem pouco tempo. Ao contrario, eu acredito que em certas constituições médicas des- -*«• 139 •©»<- favoráveis e em circunstancias hygienicas arrisca- das, a cauterização e o desbridamento das feridas, por meio do galvano-caustico, constituirá um me- thodo curativo das maiores vantagens em relação ás conseqüências do ferimento. São estes os meios de exploração, dignos de uma menção especial pelo muito que podem con- tribuir para o diagnostico dos corpos estranhos. Quando elles são empregados por mãos hábeis, raras vezes deixam logar a duvidas. Por meio da exploração se pode conhecer e determinar as lesões dos ossos e das articulações, as quaes demandam tantas vezes methodos especiaes de tratamento, que variam segundo a natureza e extensão das lesões reconhecidas pelo cirurgião. Para que, no emtanto, possa ella sortir os re- sultados desejados, é preciso ordinariamente collo- car-se o paciente na posição em que elle recebeu o tiro. Foi assim que Legouest conseguiu reconhecer o estilhaço de bomba, que feriu o general Mac- Mahon, em Sedan. Algumas vezes todos os meios ao alcance do pratico falham, e se julga o ferimento isento de corpo estranho, acontecendo, dias depois, o in- divíduo queixar-se de dor ou difficuldade de movi- mento em certa região do corpo, que ao exame denuncia a presença do projectil. ->«©• 140 «©»{- 0 diagnostico dos corpos estranhos não metalli- cos, como, por exemplo, tecidos de linho, de algo- dão e de lan, é sempre da maior diffículdade, por- que, ainda ao dedo mais habituado neste gênero de pesquizas, a impressão communicada é susceptí- vel de confundir-se com a dos tecidos comprehen- didos na lesão. As difficuldades crescem notavel- mente com a reacção inflammatoria, que frustra completamente os meios empregados. Quando se estabelece a suppuração, estes corpos estranhos, envolvidos pelo liquido purulento, ad- quirem certa mobilidade, em virtude da qual podem ser eliminados, e só então reconhecidos. O diagnostico das lesões dos vasos, e de sua es- pécie, é em extremo difíicil, mas ao mesmo tempo da maior importância em relação ao tratamento. Tem-se apresentado, como signal racional destas lesões, a imminencia de hemorrhagias, a tensão e o peso da parte. Nenhuma destas circumstancias tem valor real, na pratica, onde ás mais das vezes esta terrivel complicação apparece, quando menos se espera, e de ordinário em uma abundância não prevista. O que melhor conduzirá o cirurgião no diagnos- tico da ferida do vaso é a sahida do sangue, e o conhecimento perfeito da anatomia da parte. A lesão das vísceras nem sempre é fácil de re- -x©» 141 Kg*- conhecer-se. Se, por ventura, em certas feridas pe- netrantes das cavidades esplanchnicas, com hér- nia de algum dos órgãos nellas contidos, é possivel determinar-se com precisão o que se acha compro- mettido, como nos ferimentos do craneo com hérnia da massa cerebral, do thorax com hérnia do pul- mão e do abdômen com sahida do epiploon ou parte do tubo gastro-intestinal, na grande maioria dos casos, que não se acompanham de hérnia vis- ceral, o diagnostico será quasi sempre conjectural, baseando-se na sede e direcção provável da ferida, e nos signaes racionaes. O compromettimento dos nervos é reconhecido com certa facilidade, em razão das dores intole- ráveis que sobrevem, dos movimentos convulsi- vos, e abolição do movimento ou da sensi- bilidade, quando o projectil tem operado a sua divisão completa. As fracturas que complicam as feridas por armas de fogo se denunciam ordinariamente pela mobilidade anormal, pela crepitação, impossibi- lidade do movimento e principalmente pelo re- conhecimento de alguma esquirola óssea, que se apresenta sobre os bordos lacerados da ferida. A exploração presta os maiores serviços em taes casos, dando uma completa noção dos es- tragos, e favorecendo a extracção das partes os- _~3. 142 •«©• 143 < sm— ás reclamações de quantos se dizem contusos por balas de artilheria de todos os tamanhos, sob pena de faltar depois espaço, nos hospitaes apropriados, para aquelles que estão realmente feridos e que instam por promptos cuidados. Durante o tempo em que servi no Eponina, Hospital de sangue fluctuante, sob a direcção do meu honrado collega, o Dr. Bomfim, eram na oc- casião mesma do embarque, ao porta-lo, examina- dos todos os ferimentos, afim de que não se preva- lecessem alguns do tumulto e da confusão para se retirarem do acampamento. Em relação ao diagnostico dos accidentes que costumam sobrevir ás feridas por armas de fogo, longo por demais seria enumerar os signaes que devem dirigir o juizo do cirurgião. Entre estes, porém, sobresáem por sua impor- tância o facto de existirem na mesma enfermaria ou no mesmo hospital casos da moléstia supposta, os calefrios iniciaes, o augmento notável de tem- peratura do doente e os suores profusos. Em geral o diagnostico dos diversos accidentes não é difíicil; porém torna-se indispensável da parte do cirurgião muito habito de serviços de tal natureza e certa sa- gacidade de espirito, que lhe dá até o poder de pre- ver os acontecimentos pela contemplação e estudo -*©• 144 °<§*- dos phenomenos, em apparencia os mais passagei- ros e insignificantes. Se me fosse dado offerecer um conselho aos meus distinctos collegas que dirigem o serviço de saúde do Exercito e da Armada, eu lhes lembraria o emprego geral e assiduo do thermometro em to- dos os feridos por armas de guerra. A observação thermometrica, com quanto traba- lhosa e aborrecida, quando é feita materialmente, derrama uma luz vivissima sobre a marcha dos phe- nomenos physio-pathologicos, denunciando antes de qualquer signal racional a invasão dos acciden- tes mais freqüentes na pratica, por uma elevação insólita de calor na economia. FACULDADE DE MEDICINA DA ——•BAHIA—'-- 1873 INFECÇÃO PURULENTA. llome J!Pa'DBispo cmpciuaVia io^..^uuiuolo, teito u° Mez ] • 0 0 : / *í\ -- — í ; ■•■-- ; :5 6J — | __ ^ Ziifo ■ Sovir-cLoun- ■ 3 "' VIII GRAVIDADE DAS FERIDAS POR ARMAS DE FOGO em sempre é possivel pelo simples exame das lesões devidas aos projectis, cotejando as manifestações symptomaticas offerecidas pelo fe- rido, formar-se um juizo seguro em relação á ter- minação do ferimento. No correr deste trabalho tem sido mencionados alguns factos, que concorrem a comprovar as in- certezas e as duvidas, que assaltam o espirito do cirurgião, quando a este se dirigem os interessa- dos, procurando saber qual a sorte que aguarda o paciente, ou a justiça publica exigindo o prognos- tico do caso, e ainda mais o prazo dentro do qual se deve realisar a cura! 13 -x©° 146 °©-<- Guardará relação a gravidade da ferida com o tamanho e a natureza do projectil ? Não são raros os casos em que grandes balas de artilheria, no fim de sua carreira, apenas produzem uma fractura simples, sem maior contusão das partes molles, e muito menos divisão dos tecidos correspondentes. A natureza da bala, no em tanto, influe notavel- mente na grande maioria dos casos ; pois que com- prehende-se que os projectis de chumbo molle, como já ficou demonstrado em logar competente, deformam-se e fragmentam-se com extraordinária facilidade, dando logar a feridas múltiplas no inte- rior dos membros, as quaes se acompanham geral- mente da complicação de corpos estranhos. Dependerão o perigo e os resultados desfavorá- veis, tão freqüentes nas feridas por armas de fogo, da acção dos projectis modernos e de seu encontro no seio dos tecidos ? Nem sempre são considerá- veis os estragos produzidos por elles, e seus feri- mentos, em certas e determinadas condições, se terminam promptamente pela cura. Influirão, por ventura, occasionando a termina- ção fatal, as diversas e numerosas complicações já estudadas ? Nada se pode responder de abso- luto ; porque os resultados variam ao infinito não tanto em relação ás alterações orgânicas em si mesmas, como no que respeita aos circumfusa ->*©<> 147 <■&<- que podem imprimir, como já ficou demonstrado, um caracter de maior gravidade em ferimentos considerados, anatômica e funccionalmente, dos mais simples. Apezar disto, porém, casos ha, em que não é possivel ao pratico dissimular o grande perigo que correm os dias do ferido. Não me refiro ás he- morrhagias, que um celebre cirurgião considerava como causa da morte nos trez quartos dos indivi- duos, encontrados sem vida no campo de batalha. O ferimento dos grossos vasos não dá logar, de ordinário, e nem tempo de formular-se o pro- gnostico, tal é a rapidez com que produzem a morte ; outras vezes, porém, é possivel levar-se ás feridas e á economia, em geral, um exame mais minudente e investigador. Quando o membro é carregado pela passagem de um grande projectil, é certo que o paciente perde algum sangue, pode mesmo ficar estendido sobre o solo sem sentidos; mas nem sempre a morte se dá em seguida a este estado. Muitas vezes pode-se soccorrer ao ferido, praticando a li- gadura dos vasos principaes, ou a amputação acima da sede do arrancamento. Nestes casos a gravidade sobe tanto de ponto, que se pode reputar muito feliz o individuo que attinge a cura. O mesmo se pode dizer, quando -í-ss»» 148 *@»:- apresentam-se phenomenos, que denunciam as he- morrhagias internas, ainda mesmo que não te possa reconhecer a ferida da artéria pela impe s.bili- dade da exploração. São também da maior gravidade as lesões do craneo, principalmente nos casos em que se com- plicam de fractura, quando taes ferimentos se acompanham de commoção cerebral, coma, con- vulsões ou delirio. Então a morte algumas vezes espera o paciente depois de muitas horas, e até passados alguns dias. Lembro-me de ter visto o infeliz Tenente Joaquim de Calazans, ferido no combate de Cu- russú, por uma bala na região temporal esquerda, 36 horas depois da acção. Elle foi transportado em uma padiola, e recebido no Hospital dei Pizo, sob a direcção de meu collega o Dr. Luiz Alvares, no maior auge de delirio, procurando levantar-se, apezar de não poder coordenar os movimentos, e pronunciando palavras vehementes, porém inintel- ligiveis. O estupor que acompanha a producção de feridas, complicadas de vastas e profundas desordens dos ossos e dos nervos, annuncia de ordinário a imnii- nencia da morte para o paciente, antes mesmo de restabelecer-se a acção nervosa e a circulação cerebral. -*§><> 149 <=©*- O compromettimento da medulla dos ossos, devido á multiplicidade de esquirolas, e lesão dos vasos principacs de um membro, devem infundir os mais sérios receios ao pratico pela vida do en- fermo entregue aos seus cuidados. Em relação á primeira das lesões, a opportunidade dos grandes accidentes é offerecida, em virtude de circumstan- cias anatômicas especiaes aos vasos divididos, onde o phenomeno da coagulação é notavelmente retar- dado, e sempre incompleto pela impossibilidade da retracção de suas membranas. A penetração dos germens parasitários se realisa nas condições de maior facilidade, sendo destíarte justificados os casos tão freqüentemente infelizes de taes feridas, apontados na pratica dos melhores clínicos. O Dr. Demarquay tem observado factos nume- rosos, que confirmam a gravidade destes feri- mentos, já antes de ser ella reconhecida pelo illus- trado cirurgião do Hospital da Caridade de Paris. No tocante á lesão dos vasos, é sempre da maior gravidade a gangrena, que se offerece como um resultado muito provável, senão certo, depois que se forma o coalho obturador, quer seja este devido á acção do laço da ligadura, quer desenvolvido pelo facto mesmo da lesão, segundo as leis de ino- pexia de A. Schmidt, Ora, se os ferimentos por -y&* 150 c■€>• 152 *©*!- reinando por ventura uma constituição medica es- pecial, torna-se a mais peremptória e franca ad- vertência ao pratico, de que deve muito des- confiar da marcha provável da lesão, e da sorte do ferido, afim de que não arrisque um juizo diagnos- tico, que pode ser desmentido pelos factos. O mesmo se pode dizer a respeito dos appositos e tópicos diversos, empregados no curativo das feridas por armas de fogo, e até do próprio cirur- gião e seus ajudantes, que são muitas vezes porta- dores dos germens, de que se originam as mais lethiferas epidemias, que talam os serviços nosoco- miaes. Em contrario disto a gravidade do prognostico é naturalmente modificada, quando o ferido, por sua graduação ou circumstancias outras, faz o seu tratamento no logar mesmo da ambulância. Ahi não sendo possivel a accuinulação de doentes, causa de perpetuação da espécie zymogena na atmosphera, a marcha da cicatrização é quasi sempre regular, não se complica de manifestações caprichosas e insólitas. Então quaesquer conse- qüências derivam-se rigorosamente da fonte trau- mática que é pura, e o cirurgião caminha desassom- brado, crente e confiado na Sciencia, que o arma dos recursos os mais engenhosos e os mais variados. Tem-se procurado estabelecer o paralello entre -x3>« 153 »<&<- as feridas por armas de fogo e as que são devidas ás demais causas vulnerantes. A grande maioria dos práticos opina pela maior gravidade daquellas. Os ferimentos devidos á deflagração da pólvora são por si mesmos complicados; porque, após ri- gorosa analyse, diffícilmente se comprehenderá o caso em que deixe de dar-se o abalo instantâneo dos tecidos, percutidos pelo projectil, e conseguin- temente a suspensão da circulação, diminui- ção da temperatura e abolição da acção nervosa, que podem ser em certo numero de casos tempo- rárias, porém que não raras vezes se apresentam de um modo definitivo. Estas alterações, é certo, apresentam-se verosi- niilhantemente nas feridas contusas ; mas o que estabelece a maior differença, quanto á gravidade, e a extensão das desordens e a natureza das modificações experimentadas pelos tecidos. Nas feridas contusas, as desordens se limitam á parte que recebeu direetamente a acção do corpo vul- nerante; nos ferimentos por armas de fogo, os desarranjos anatômicos excedem sempre a cir- cumscripção do ponto percutido. Pelo que diz respeito á contusão, a mortificação dos tecidos im- põe-se como um phenomeno immediato e necessá- rio- a eliminação é sua conseqüência indispensável, em prazo mais ou menos certo e determinado. Se -*s>° 154 o©k- nas circumvizinhanças se dá igualmente a desorga- nisação, as alterações differem em espécie e gravidade. Dahi resulta o vago e indeterminado, a que tantas vezes se chega no prognostico das feridas por armas de fogo. O que, entretanto, mais do que tudo determina a maior gravidade destas lesões é a existência de complicações, principalmente das que se referem ás lesões ósseas, que são essencialmente differentes e mais perigosas do que quaesquer outras. E' certo que casos se offerecem na pratica, em que a cura se realisa do modo mais rápido e sur- prendente; porém cumpre reconhecer-se a simpli- cidade de taes lesões, como um facto em extremo excepcional. Práticos os mais distinetos, entre os quaes se distinguem os professores Billroth, Gos- selin e o Dr. Demarquay, apontam curas rápidas por primeira intenção. Pela só enunciação dos resultados, torna-se claro e patente que em taes circunstancias não se tra- tava mais do que de uma simples divisão de tecidos, sem o intermédio de partes compromettidas em sua vitalidade. Ainda nestes raros casos jamais ga- rantirei a duração de tal cieatriz, que bem pode deixar de ser definitiva, abrindo-se mais tarde, pela simples disjuncção dos bordos superficialmente -X5>° 155 «.@*— collados, para dar sahida a partes mortificadas ou a verdadeiros corpos estranhos. No que respeita aos accidentes, a gravidade do prognostico das feridas por armas de fogo attinge um grau muito elevado. Alais do que quaesquer outras, ellas se expõem a estados mórbidos os mais sérios e compromettedores da vida. A razão desta importante prerogativa se encontra nas con- dições tão tristes e deprimentes, em que se acha o soldado antes da acção, e nas circumstancias tão prejudiciaes d'accumulação de doentes em hospi- taes, onde não podem ser observadas as regras de hygiene, e que são de uma organisação ás mais das vezes defeituosa e imprevidente, segundo as possi- bilidades da occasião. Este conjuneto de causas jamais se offerece na pratica dos tempos de paz, e nas grandes cidades, onde a vigilância administrativa e a solicitude pro- fissional previnem, ou combatem, vantajosamente o desenvolvimento de affecções, que só teem sua razão de ser em circumstancias atmosphericas especiaes. Em relação aos diversos estados mórbidos, con- siderados accidentes das feridas por armas de fogo, cumpre conhecer-se a occasião do perigo, e o phenomeno que o denuncia. Sabe-se geralmente quanto é duvidosa a importância dos signaes ra- —>©« 156 »©*<— cionaes, e isto se deduz do que ficou dito sobre o diagnostico dos accidentes. Então viu-se o papel de supremacia, que repre- sentava a observação thermometrica, pelos resul- tados colhidos á cabeceira do doente. Pois bem ; o mesmo se dá em relação á gravidade dos feridos, que se descortina aos olhos do cirurgião pela sim- ples observação do traçado thêrmometrico. Quando se aggrava o estado do ferido, as linhas de que se compõem este traçado se approximam muito da vertical. A thermometria é então um alvitre precioso; porque por meio delia o pratico resolverá as maio- res diffículdades clinicas, e o seu juizo será exacta- mente guiado nas investigações e nas pesquizas, tendentes a descobrir o que se passa nas profun- dezas do organismo, surprendendo as verdadeiras e as mais francas indicações, quer no sentido de frustrarem-se as condições morbigenas, quer no tocante á applicação racional e sensata dos agen- tes da therapeutica cirúrgica. E só em taes circumstancias, e mediante resul- tados tão fecundos, poderá a Sciencia gloriar-se de haver attingido o progresso, em relação aos seus fins altamente humanitários. Os phenomenos das fermentações mórbidas, já na superficie traumática, já transmittidas aos cen- -*©° 157 es- tros da vida orgânica e ao systema intermédio de nutrição, revelam-se sempre por um excesso de producção de calor, que se acompanha muito fre- qüentemente de suores profusos, e se denuncia francamente á observação thermometrica. Quando a temperatura no ferido se eleva de um modo rápido e insólito, é signal de que se tem augmentado a gravidade relativa aos seus ferimen- tos, denotando a imminencia de um fatal desen- lace. Tendo adquirido na pratica clinica, e principal- mente no estudo das feridas em geral, a certeza de taes resultados, desde o anno passado, quando regi a cadeira de Clinica externa, mandei preparar qua- dros especiaes, que reunissem as observações ther- mometricas e as do pulso. Este estudo foi das maio- res vantagens ao ensino, quer em relação ao dia- gnostico, quer no tocante ao tratamento, que so- mente dirigido por uma bússola tão exacta poderá aproveitar o occasioproeceps do velho Hyppocrates. Em relação aos serviços especiaes de feridos, as vantagens desta pratica se mostram ainda mais notáveis. Quando se precisa de tempo para cuidar de um numero sempre crescido de doentes, a gravi- dade dos feridos deverá ser indicada de tal modo, que, sem custo, e já em certa distancia do leito ->«©=> 158 »©*- do paciente, possa o cirurgião conhecer as modifica- ções, que se teem operado em sua ausência, e quaes os individuos que seriamente reclamam os seus cuidados. Esta vantagem é conseguida mediante o quadro, que precedeu, o qual será collocado ao lado da papeleta do doente, com os números e linhas bem visiveis, e o traçado thermico ainda mais saliente, devendo ser ern tinta vermelha para poder-se mesmo de longe observar. Desta sorte o pratico somente empregará o precioso e escasso tempo, de que dispõe, com aquelles que mais necessitam de seus soccorros. A elevação brusca do traçado thermico será o signal de alarma, a que deve elle acudir com o mais minucioso exame das feridas e uma medica- ção apropriada. SEGUNDA PARTE TRATAMENTO DAS FERIDAS POR ARMAS DE FOGO s praticas aconselhadas e empregadas no tra- tamento destas lesões teem variado em todos os tempos, differindo igualmente de resultados, con- forme a sede, a extensão, a importância das alte- rações anatômicas, os estados que as complicam e principalmente a phase que teem attingido em sua marcha. Quando a ferida é entregue aos simples processos de regeneração dos tecidos, livre da direcção que lhe imprime um tratamento especial, ella pode correr os tramites regulares até chegar a cicatri- M —>®o 160 «©•<— zação. Para tanto lhe basta a plasticidade dos te- cidos, que entram na composição do organismo, e as tendências nutritivas dos elementos. Uma complicação, porém, da ordem da hemor- rhagia, pode intervir, motivando a morte pelo aban- dono do paciente, ou pelo compromettimento de um órgão importante á vida, que determina desarran- jos immediatos, e a terminação fatal mais remota. Ainda mesmo nestas circumstancias, muitas vezes, a organisação satisfaz prodigamente ás des- pezas orgânicas, no sentido da conservação do ser individual. A' complicação ameaçadora da ferida arterial, o organismo oppõe um coalho que obtura a embocadura do vaso, assim como á lesão da vis- cera seguem-se os phenomenos variados de repa- ração dos tecidos. O estupor é succedido pelo es- timulo inflammatorio, com accrescimo das forma- ções nutritivas; os elementos constitutivos dos te- cidos não se degeneram, ao contrario se multipli- cam; e com a organisação definitiva se realisa a cura, voltando as propriedades orgânicas suspensas pela acção do corpo vulnerante. O homem, entretanto, sempre em luta com as gerações de seres que o rodeiam, procurando sup- plantal-o, faz dellas o pedestal de suas gran- dezas, aproveita-as em beneficio de sua conser- vação e aperfeiçoamento, para prostrar-se mais -x®« 161 ••©■<- tarde diante de sua lethifera influencia. O rei da creação, que tala o universo com os prodígios de sua imaginação e de sua intelligencia, avassalan- do-o por meio de poderosos recursos, cáe ferido na luta com a mais desprezível immundicia, sempre prompta a infestar-lhe a economia, precisando apenas para tanto da porta que lhe abre o trau- matismo. Diante dos perigos da infecção, o organismo ex- perimenta uma serie de modificações, que tendem a repellir a prejudicial invasão, libertando a econo- mia do seu fatal domínio. Mas quantas vezes succumbe ella aos effeitos tóxicos das septice- mias? O mais importante, pois, cabe á Sciencia mo- derna, na inauguração de medidas preventivas, tendentes a obstar o desenvolvimento dos esta- dos mórbidos, que podem ter origem nas feridas. Combater estes estados, em plena evolução, tem sido sempre um ingrato trabalho, poucas vezes recompensado na pratica. O grande e im- portantíssimo mister consiste em impedir por todos os meios ao alcance da arte, e por praticas verda- deiramente racionaes, os ataques dos germens-pa- rasitarios ás feridas, frustrar os processos de fer- mentação mórbida, ou, na impossibilidade de rea- lisarem-se taes vantagens, fechar as portas á pe- -K3>< 162 <-©*- netração do tóxico, quando elle ameaça a torrente circulatória. Estes trez pontos devem ser visados invariavel- mente por todo pratico, que procura salvar o maior numero de victimas, e que mira especial- mente os resultados estatísticos, tomando-os por base de suas applicações therapeuticas. Assim, no tratamento das feridas por armas de fogo, o estudo dos methodos curativos fica comple- tamente separado, do que se deve considerar inter- venção cirúrgica armada, a qual se refere especial- mente ás operações diversas, que são indicadas, e as questões importantíssimas a ellas ligadas. O curativo, porém, domina todo o tratamento; por quanto não só tem indeclinável applicação aos numerosos casos em que é dispensada a interven- ção cirúrgica, como ainda é reclamado nas feridas produzidas em virtude das mesmas operações. E' do conjuncto habilmente combinado dos di- versos meios therapeuticos, sob vistas racionaes, que ha tudo á esperar-se, nos variados casos que se apresentam na pratica. Para completar o estudo desta parte tão impor- tante da historia das feridas por armas de fogo, alem dos assumptos já mencionados, torna-se in- dispensável o estudo dos soccorros prestados aos feridos nas ambulâncias, e seu transporte aos lios- -*©• 163 ca- pitães permanentes, o exame dos tópicos geral- mente empregados, e principalmente a enumera- ção das praticas do tratamento conservador, que se firma nos brilhantes resultados dos processos cu- rativos modernos. I SOCCORROS AOS FERIDOS /J\ s cuidados prestados aos feridos no campo ^^de batalha são sempre da maior importância, em relação á marcha e á terminação, que aguar- dam os ferimentos por armas de fogo. No tempo em que não eram attendidas estas ne- cessidades da guerra, consideráveis eram as perdas experimentadas pelos exércitos, influindo de uma maneira desvantajosa sobre o moral dos soldados a certeza do abandono, depois de suas feridas ; e o receio de succumbirem, sem os soccorros indispen- sáveis, enfraquecia-os diante do inimigo. Ambulâncias — A instituição destes importan- tes serviços clínicos, nas linhas de combate, deve- ->■©<> 166 eigX- se ao gênio altamente innovador de Larrey, quan- do, perdida pelo general Houchard a batalha de Limbourg, em 1792, os feridos cahiram no poder dos inimigos, sendo o exercito francez obrigado á uma rápida retirada. Então o coração caridoso do distincto cirurgião lamentou tamanha perda, e apoderado de verdadeiro pezar por um aconteci- mento tão lamentável, procurou desde logo re- formar o serviço de soccorros aos feridos, de modo a não haver mais difficuldade de evacuar-se a ambulância, á medida que os primeiros cuidados são dispensados. As ambulâncias então tornaram-se volantes; e se com a sua instituição a vida do homem da Sci- encia mais do que nunca se achou exposta, a hu- manidade, como justa retribuição, envia-lhe mil bênçãos pelo grande numero de vidas disputadas á crueldade dos vencedores. Nas ambulâncias volantes deve haver o pessoal medico indispensável, ao qual é agregada uma companhia de enfermeiros para o serviço de trans- porte dos feridos. Esta instituição prestou os mais assignalados serviços nas batalhas de Ma- genta e Solferino, nas quaes a conducção dos fe- ridos foi effectuada do modo o mais regular, e em harmonia com os preceitos da arte. Estes homens são habilitados para intervir em caso de qualquer -ks-3 167 <»s*- hemorrhagia, sabendo empregar a compressão na ferida mesma, na raiz dos membros e entre a ferida e o coração. Nas ambulâncias existem os medicamentos ne- cessários para o primeiro curativo, principalmente os de acção hemostatica, fios, compressas, atadu- ras e apparelhos para os casos de fractura compli- cada. Para o transporte commodo e conveniente desta ordem de feridos, os cirurgiões alleinães empregam de preferencia os apparelhos modelados, que são preparados com a maior perfeição e rapidez, gra- ças á facilidade com que o gesso se solidifica. E' para este fim que, por um regularmento especial, as ambulâncias prussianas contém sempre uma certa porção desta substancia, aparas de couro e de tapetes, a fim de que a applicação de taes appare- lhos siga de perto o ferimento, podendo ser o doente immediatamente transportado para as am- bulâncias principaes ou hospitaes de sangue. O transporte dos feridos era feito a principio por animaes, resultando disto movimentos irrita- tivos dos fragmentos das fracturas e contusões das partes molles ambientes, que muito influiam sobre as suas conseqüências. Modernamente este serviço é feito por vehiculos apropriados, onde o ferido encontra toda a commodidade desejada, sem receio -*•©<> 168 °is-<- de abalos, sempre prejudiciaes aos seus feri- mentos . Durante a ultima guerra da Europa, o serviço medico prussiano primou pela regularidade, pres- teza e perfeição com que foi feito o transporte dos feridos, não obstante as grandes jornadas que eram obrigados a fazer para bem se acondicionar. Neste sentido muito deixou a desejar a campa- nha do Paraguay. E' certo que o serviço das am- bulâncias esteve a cargo de alguns cirurgiões dis- tinctos por suas habilitações, e ainda mais pela sua dedicação e patriotismo ; porém muita vez foi necessário a estes collegas substituir, com os re- cursos de sua intelligencia, as immensas faltas de que se resentia a parte propriamente adminis- trativa. Quanto ao emprego dos apparelhos de gesso, nada de importante se offereceu á observação; porquanto jamais foi elle feito pelos nossos cirur- giões, que, como os francezes na guerra de 1870, não os empregaram, porque desconheciam as suas vantagens e não estavam familiarizados com o modo de preparal-os. E' para sentir que entre nós não exista um regu- lamento apropriado, em que sejam previstas estas e muitas outras necessidades praticas, que devem ser immediatamente satisfeitas nos tempos de -*&>« 169 "&<- guerra. Da observância de disposições adequadas resultaria uma grande somma de gloria para o corpo scientifico, e maior animação para os com- batentes, que se compenetrariam da convicção de serem pensadas as suas feridas, na occasião mesma de recebel-as, e não ficarem expostos no campo á malvadeza de inimigos, da ordem dos Paraguayos, que passaram, em nome da civilisação de seu paiz, todos os nossos feridos a fio de espada. Nas ambulâncias é feito o primeiro curativo. Ahi deve ser explorada a ferida, afim de reconhecer- se a existência dos corpos estranhos, sendo estes immediatamente extrahidos, se, por ventura, ad- quire-se a certeza de sua presença, e se dispõe dos meios indispensáveis. Quando o ferimento se limita ás partes molles, se deve fazer um curativo simples, ordinariamente com água fria, applicando-se sobre a parte uma simples compressa molhada, por cima um chu- maço de fios, igualmente embebido d'agua, man- tendo-se estas peças por meio de circulares leve- mente compressivas. Nos casos de hemorrhagia, cumpre ao pratico empregar a compressão, e só em ultimo caso a li- gadura, quando o corrimento sanguineo não cede ás applicacões ordinárias por msufficientes. Em caso de ferida dos grossos vasos, o arrocho simples, ->^>o 170 «©■<- ou elástico de Esmarch, deve ser preferido aos tor- niquetes, que demandam sempre muito cuidado no transporte dos feridos, afim de não se desar- ranjar ou se deslocar a compressão. O professor Sedillot lamenta que as ambulân- cias actuaes não estejam ainda organisadas, de modo a tornar-se ahi possivel a pratica das ampu- tações immediatas. Eu penso que não são estas as maiores lacunas de similhantes serviços; pois que as circumstancias variam nas difíerentes cam- panhas, sendo em certas localidades mais vantajo- sas as amputações immediatas, e em outras incer- tos e duvidosos os seus resultados. Ao meu ver, a operação única que se deve fazer nas ambulâncias é a extracção das balas, e então cumpre ao cirurgião, depois de feito o curativo provisório, entregar ao ferido um bilhete, que in- dique o resultado obtido destas tentativas ao chefe do serviço, onde tiver elle de ser definitivamente curado. Nos casos de fracturas complicadas, uma vez combatida a hemorrhagia pelos meios apro- priados, é do dever do facultativo applicar um apparelho de gesso, que mantenha os fragmentos em juxtaposição, durante o transporte do ferido. Esta pratica, além de permittir a fácil remoção do paciente, impede que os fragmentos, ou as esquirolas ósseas, irritem as partes molles circum- -*@° 171 'ex- vizinhas, dando logar a reacções sempre prejudi- ciaes, acompanhadas de longas suppurações e todas as demais conseqüências, que dellas se podem originar. Hospitaes de sangue — Ahi o ferido encontra recursos maiores para o seu curativo. Este pode então ser feito de um modo definitivo, pois que o cirurgião dispõe dos meios indispensáveis. Algu- mas operações mais urgentes devem ser praticadas, sendo possivel aos operados permanecerem ahi por alguns dias, até chegar a occasião de serem eva- cuados para os hospitaes fixos. Nas grandes batalhas é tamanho o numero de individuos a reclamarem os primeiros cuidados cu- rativos, que não puderam ser distribuídos nas am- bulâncias, que mal se pode examinar os feridos, trazidos ás dezenas e ás centenas. Em taes circum- stancias, já muito é combaterem-se as complica- ções mais momentosas, taes como geralmente são as hemorrhagias. Durante a guerra do Paraguay, em virtude da fácil conducção dos feridos por água, o exercito brazileiro teve seus hospitaes fixos em Comentes, Humaytá, Assumpção, além dos que já existiam em Montevidéo e Buenos-Ayres. Os hospitaes de sangue funccionaram em vapores das melhores accommodações para tal fim, podendo durante a -X®s 172 *©■!- viagem ser convenientemente curado um certo nu- mero de feridos, e praticadas as principaes ope- rações. A remoção dos doentes para os hospitaes do Rio de Janeiro foi igualmente feita por meio de navios de boa marcha, demandando muito pouco tempo para o transporte dos feridos. Foi esta uma das poucas vantagens que teve o servião de saúde, durante esta importante campa- nha, vantagem devida á circumstancia de demora- rem todas estas localidades á beira d'agua. O sim- ples facto da mudança de clima muito influiu para ò restabelecimento de alguns feridos, esgotados por longas suppurações, que eram removidos dos hospitaes de Corrientes e do Paraguay, verdadeiros focos de infecção, para os de Montevideo e Buenos- Ayres, onde gozavam de melhores vantagens. Os que não podiam resistir ás perdas motivadas pela âspereza do clima das cidades do Prata vieram encontrar, na temperatura branda e hospitaleira de seu paiz natal, lenitivo ás suas dores physicas e conforto aos soffrimentos moraes. Devem ser consignados á esta causa, de um va- lor inquestionável, os bellos successos, que aponta o Dr. Bustamante depois de suas operações, prati- cadas no Hospital da guarnição do Rio de Janeiro, em feridos procedentes do exercito. II EXTRACÇÃO DOS PROJECTIS primeiro cuidado que se impõe ao cirurgião -^o-quando se lhe apresenta um ferido a exame, é a exploração do ferimento, quer por simples ins- pecção, quer pela introducção de instrumentos ou do dedo. Nestas indagações o fim principal do pratico é a pesquiza do corpo estranho, cuja extracção se offerece como a primeira e mais importante indica- ção do momento. Algumas vezes o canal da ferida se presta per- feitamante ás pesquizas indispensáveis, para o re- conhecimento e extracção da bala; mas em certos casos, em virtude da disposição dos planos fibrosos ->■©• 174 c©^- e da direcção da ferida, torna-se necessária a dila- tação de uma de suas commissuras, ou de ambas ao mesmo tempo. Para isto se costuma usar de uma tenta-canula, que, introduzida até o corpo es- tranho, guia o bisturi destinado a incisar a parede do canal traumático, offerecendo desta sorte largas proporções á abertura pela qual deve sahir o pro- jectil. Na pratica de taes incisões dá-se de ordinário o mesmo que nas pesquizas exploradoras : o dedo é sempre o melhor conductor do instrumento, por ser o mais sensivel e o mais intelligente. Depois o bisturi escorrega com extrema facilidade sobre a polpa digital, a incisão é mais regular e os cortes são mais precisos. Em muitas occasiões não são necessárias taes operações preliminares, e o cirurgião intervém im- mediatamente com os instrumentos apropriados. Estes são ordinariamente fortes pinças dentadas, tribulcões, curetas, tira-balas, elevadores, tira- fundo, etc. O modo, porém, de actuar destes instrumentos é que cumpre investigar-se. Uns realisam a extrac- ção das balas por simples apprehensão; estes tem dois ramos, que se afastam e se approximam pelo mesmo systema de articulação das pinças de cura- tivo, ou por um mecanismo particular, desenvol- -ks» 175 ct^i- vendo uma cavidade com espaço suffíciente para conter o projectil; outros, emfím, fazem o officio de uma verdadeira alavanca, tomando ponto de apoio sobre os tecidos circumvizinhos. O tira-fundo foi proposto para se parafusar na bala, por meio de uma rosca apropriada a tal fim, trazendo comsigo o corpo estranho, a que se prende, como se cons- tituíssem ambos uma só peça. Apezar de todos os melhoramentos, introduzi- dos na confecção destes instrumentos, elles deixam sempre na pratica muito a desejar, mostrando-se em grande numero de casos insufficientes. Quando o projectil se acha encravado no osso, ou encontra diffículdades insuperáveis á sua sahi- da na resistência e na direcção dos planos da re- gião, ordinariamente as tentativas de apprehensão tornam-se baldadas, podendo ser a impossibilidade da extracção de taes corpos motivo para a inter- venção cirúrgica, no sentido da ablação do membro. Eu acredito que muito se facilitará a extracção das balas com o auxilio do galvano-caustico, que é susceptível de transmittir com extrema rapidez uma alta temperatura ao corpo estranho, de modo a cauterizar os tecidos limitantes, preparando uma cavidade, onde os seus movimentos são mais fáceis e o emprego dos meios apropriados melhormente sucedidos. -í"s©o 176 °&<- A extracção dos corpos não metallicos quasi sempre se difficulta, em virtude da sensação ex- perimentada pelo dedo que explora, sensação que muito se parece com a resultante do toque dos tecidos divididos. No tocante ás regras e preceitos recommenda- dos para tal fim, envio o leitor aos tratados de Me- dicina operatoria, onde o assumpto é estudado com o indispensável rigor e minudencia. III TÓPICOS MEDICAMENTOSOS v\\ s substancias empregadas e aconselhadas no c~U3^ tratamento das feridas por armas de fogo constituem imi tão longo catalogo, que diffícil- mente se o conservará na memória, Não ha herva que por sua vez não tenha sido recommendada, como capaz de abreviar a marcha das feridas, eliminar as partes desorganisadas, e rea- lisar a cicatrização por virtudes secretas e maravi- lhosas. Não ha uma só destas substancias, que não tenha produzido curas espantosas cm doentes des- emranados pelos melhores clínicos! O vulgo acredita facilmente nos charlatães e nas suas drogas, faz clellas um largo uso, com ->-©* 178 (■&<- quanto pague bem caro a sua ignorância e a sua dedicação a estes flibusteiros, que infestam até as nossas capitães com a mais descommunal audácia. No Rio da Prata é crença geral que o aipó constitue o especifico sem rival das lesões por armas de fogo, e assim todos os feridos reclama- vam a preciosa substancia, que curava os casos simples, sendo sua acção completamente indiffe- rente nos de maior gravidade. Quanto a mim, o modo de actuar destas sub- stancias, que pretendem os foros de inodulantes, re- fere-se muito especialmente ao gênero de curativo empregado. E' assim que a applicação assídua de compressas embebidas em líquidos medicamento- sos, de effeito therapeutico duvidoso, constituem um processo perfeitamente hydrotherapico, deven- do-se attribuir a cura não á acção da substancia preconisada, mas simplesmente á circumstancia relativa á temperatura do liquido, e á occlusão per- manente das feridas. Nos casos em que se faz uso de uma preparação alcoólica, os effeitos produzidos serão legitimamente filiados aos do álcool, cujas propriedades antisepticas são geralmente co- nhecidas. O mesmo se dá a respeito cias pomadas, ce- rotos, unguentos e óleos, em todos os tempos tão elogiados, fazendo parte ainda presentemente da ->-@o 179 .©+- bagagem de alguns práticos, que, interrogados, não dariam a razão de seu emprego, se limitando a de- senrolar uma longa lista de factos, dos quaes o mais simples foi um estupendo milagre. Entre estas substancias cumpre, porém, distin- guir alguns agentes das medicações excitante e narcótica, que poderão encontrar indicação ade- quada em alguns casos muito especiaes e raros. Com os primeiros serão excitadas vantajosamente as feridas, que apresentam um caracter anêmico ; com os outros modificam-se de alguma sorte as dores intensas, que tantas vezes tiram o somno aos doentes, contribuindo a esgotar-lhes as forças. Diante das novas e importantes vistas, que ins- piram os estudos modernos, taes vantagens são certamente muito secundarias, não se offerecendo jamais na pratica a necessidade de meios, que nem são expectantes, porque podem ser algumas vezes nocivos. Ultimamente, porém, um certo grupo de tópicos medicamentosos tem sido aproveitado no trata- mento das feridas, realisando vistas clinicas da maior importância. Estes agentes constituem a medicação desinfectante, que depois das pesquizas de Pasteur, tornando-se de uma applicação alta- mente racional, se tem generalisado entre os pra- -v-^o 180 <■©*- ticos mais distinctos por suas incontestáveis van- tagens . Estas substancias são: o ácido phenico, o coal- tar, a creosota, o chloro e a maior parte de seus preparados, entre os quaes se distinguem o chlo- rureto de zinco, de cal e o de ferro, o hyposulfíto de soda, o permanganato de potassa, o iodo, o ácido thymico, o álcool, a glycerina, o sulfato de ferro, de zinco, o tannino e o carvão. De todas estas substancias, graças aos trabalhos de Lister e de Langenbeck, o ácido phenico é actualmente o mais empregado no tratamento das feridas, e o mais fiel em seus resultados. Os tópicos phenicados vieram completar o tra- tamento das septicemias cirúrgicas pelo sulfato de quinina em alta dose, que tão decisivos resultados produz na maior parte dos accidentes das feridas de guerra, destruindo os germens que por sua pre- sença infectam o sangue, e despedindo-os do orga- nismo pelos diversos emunctorios. Não será difíicil comprehender-se que o com- plemento do tratamento antiseptico deve referir- se natural e logicamente a meios locaes, que sejam capazes de aniquilar a vitalidade dos germens pa- rasitários depositados na superficie da ferida ou impedir a sua propagação na economia. Alguns outros tópicos medicamentosos são ap- -*$.: 181 -&-,- plicados sobre a ferida com o fim de combater as hemorrhagias. Estes meios devem sempre ser em- pregados com certa circunspecção ; por quanto alguns são capazes de produzir uma verdadeira cauterização dos tecidos, levantando uma barreira á sahida do sangue, outros ocasionam a coagula- ção rápida deste liquido nas extremidades vascu- lares, resultando d'ahi a sua oblitcração, o resto compõe-se de substancias adstringentes, que con- seguem o desejado resultado pela constricção das artérias. Entre as diversas applicações conhecidas como hemostaticas, as que gozam de verdadeiras honras praticas são: o perchlorureto de ferro, generali- sado por Pravaz, a água de Pagliari, aconselhada com o maior entlmsiasmo pelo professor Sedillot, o balsamo do Commendador, da predilccção do Dr. Giraldès, o ácido phenico, tão ardentemente preconisado por Lister e Lemaire, e a creosota, re- commendada pelo professor Billroth. Alem destes, ha alguns outros tópicos absorventes e stypticos, que são na pratica de acção contestada. Entre todos se torna saliente a água fria, pela facilidade com que pode ser applicada, aehando-se ao alcance do pratico em qualquer logar. I\7 CURATIVO DAS FERIDAS £A^ extraordinária importância desta parte ^Ji^do tratamento das feridas por armas de fogo é facilmente comprehendida pelos espíritos mais esclarecidos; e com quanto nestes últimos tempos se tenha procurado sophismar as questões, que re- sultam das applicações tópicas, por se julgar inclif- ferente o seu emprego, o estudo das circumstancias, que as devem presidir, impõe-se como o maior dever ao cirurgião consciencioso. O curativo destas feridas c susceptível de expe- rimentar modificações, segundo a epocha, os ca- racteres da lesão e a influencia dominante das constituições médicas. No caso em que se trata de um ferido na clinica domiciliaria, nas ambu- lâncias ou em circunstancias hygienicas favorá- veis, as vistas primeiras do pratico volvem-se para os meios de moderar a reacção inflammatoria. negando elementos ás suppurações, que ultrapas- sam o papel simplesmente eliminado1/. Depois dos primeiros dias, os cuidados cirúrgicos são reclama- dos pelos estados especiaes da superfície traumá- tica,, e circunstancias inherentes ao trabalho repa- rador, que, podendo ser excessivo, não raras vezes offerece-se de uni modo deficiente, prejudicando de uma e outra sorte a marcha da cicatrização. Nos casos em que é compromettida a solirkz dos membros, em virtude de lesão da armadura óssea, o systema de curativo ck-ve attender, com;) uma medida geral e invariável, a innnobilisaçào da parte, que é realisada de modo perfeito pelos ap- parelhos modernos. Quando reina uma constituição medica desfa- vorável aos ferido?, o que acontece commum- mente na pratica dos grandes hospitaes, era vir- tude da accumulacão de doentes, as vistas clinicas se distraem, no fira de satisfazer indicações mais importantes. Então a todas estas exigências curativas, que se devem lançar era conta das applicações tópicas, ajunta-se impreseindivelraente o pensamento que ->«@° 185 •©»<- cumpre presidir o systema inteiro de tratamento, no intuito de impedir na ferida o accesso dos ger- mens productores dos accidentes, sua elaboração na superficie traumática, ou a invasão final dos centros da economia por estes princípios lethi- feros. Attender a tantas e tão variadas circumstan- cias, no tratamento das feridas, parece á primeira vista para o pratico a mais árdua e difíicil tarefa. Longe disto, se achando os seus conhecimentos ao nivel dos progressos da therapeutica cirúrgica, as combinações curativas se facilitam de um modo satisfactorio, em relação aos resultados desejados. Felizmente, é quasi sempre possivel attingir-se a applicação dos preceitos, que resumem todas as esperanças clinicas, assim fosse fácil, tantas vezes, satisfazerem-se exigências therapeuticas das mais notáveis vantagens, relativamente á remoção dos feridos, na occasião em que o perigo é supremo, e não pode ser conjurado doutra sorte. Curativo simples — E' assim chamado o cura- tivo pelo ceroto, ou substancias unctuosas outras, sem acção bem determinada. Elle tem sido em to- dos os tempos generalisado na pratica, em virtude de sua simplicidade, e da confiança que nos é trans- mittida da antigüidade no emprego das pomadas e dos unguentos. 0 <*A -*@« 186 «©■<— Este curativo consiste na applicação de uma compressa fenestrada, sobre a qual se passa a substancia unctuosa, ordinariamente o ceroto sim- ples, tendo por fim facilitar o despegamento das peças de curativo, de chumaços de fios collocados sobre esta compressa, com o fim de apoderar-se dos liquidos filtrados da superficie traumática, e de circulares contentivas para manterem os appo- sitos. A ferida somente é descoberta depois dos trez primeiros dias, logo que a suppuração se es- tabelece, offerecendo a opportunidade de substi- tuirem-se as peças do curativo, sem dores para o paciente. Similhante processo não se inspira em vistas especiaes, não prevê a supe venção dos accidentes, nem é susceptível de modificar o estado local das feridas. Elle representa o tratamento pela expe- ctação negligente. Calor humido — O emprego tradicional das cataplasmas emolientes ainda subsiste na pratica de alguns cirurgiões, que não se acham familiari- zados com os antiphlogisticos verdadeiramente dignos deste nome. Estes appositos são utilisados no fim de com- bater as inflammações locaes. Longe, porém, de attingir estes resultados, o calor humido favorece ->-©° 187 «©*;- o infarte inflammatorio, sem ter ao menos o poder de moderar as dores. O pensamento desta pratica curativa não pode ser outro senão facilitar a suppuração. Isto se ajusta perfeitamente com as doutrinas antigas, que viam no pus um balsamo cicatrizante. Presente- mente, sendo este liquido mórbido considerado um accidente para as feridas, e o momento para quantas manifestações desfavoráveis se podem comprehender, estes curativos teem sido repellidos do tratamento das feridas por armas de fogo, como irracionaes e retrógrados. Depois sabe-se perfeitamente, pelas luzes que dimanam da Histologia pathologica, que o calor actuando sobre uma ferida dá logar á dilatação dos capillares. A paresia destes vasos attrahe por um phenomeno puramente physico os líquidos para a parte. Dahi o engorgitamento, tensão, dor e au- gmento de temperatu i locaes, constituindo um estado em extremo desfavorável á marcha do feri- mento . Considerando-se as circumstancias nocivas do meio em que se acha o ferido, e as constituições médicas dominantes, comprehender-se-ha os pe- rigos, a que este curativo infeliz pode dar logar. O germen de fermentação, que o ar deposita na fe- rida, pelo facto da applicação do calor humido, -!«©o 188 e@*i- encontra todas as vantagens para o seu desenvol- vimento, sua reprodução local e infecção do orga- nismo . Isto se observa ainda na clinica de cirurgiões arraigados ás velhas praticas^ onde os accidentes por sua freqüência dão logar a desprendimentos pútridos, que offendem o olfacto, ainda o menos delicado, a ponto de diffícilmente supportar-se a estada em serviços similhantes. Nestes últimos tempos taes appositos estão con- demnados, pelos práticos mais distinctos, a quasi completa proscripção dos serviços de feridos, em que são, além do mais, verdadeiramente incom- modos. Cauterisação das feridas — O curativo de que fazia-se antigamente uso, em todas as feridas por armas de fogo, consistia na applicação do óleo quente sobre o ferimento ainda recente. Isto se deu até que Ambrosio Pare chegasse a reconhecer a maior facilidade da cicatrização, nos casos em que se deixava de fazer similhante curativo. O retardamento da cura, depois da cauterisação das feridas por armas de fogo, fez com que esta pratica fosse logo por todos abandonada, sem maior exame. O lado racional do processo não foi convenientemente comprehendido. Naquelles tem- pos, porém, não se conhecia bem a historia clinica -*©=> 189 «>©*■ destas lesões. Os accidentes eram pouco estudados, suas causas ignoradas, e seus phenomenos mal apreciados. A cauterisação de uma ferida regularisa de al- guma sorte a desordem dos tecidos, produzida pela violência externa, formando-se uma eschara resis- tente, que separa, de um modo mais ou menos completo, a camada de tecidos subjacentes do con- tacto do ar atmospherico. Já estas vantagens eram reconhecidas por alguns cirurgiões, que pro- curavam substituir á acção dos instrumentos cor- tantes o uso das substancias cáusticas. O methodo de cauterisação em flechas do Dr. Maisonneuve assenta-se sobre taes vantagens praticas, e encontra nellas a razão de sua prefe- rencia, nos casos em que pode substituir o bisturi. O curativo dos antigos, justificado como fica por estas considerações, sendo praticado nas feridas recentes, não tem razão de ser; não passa de uma applicação absurda. E' certo que, desde o momento da lesão, os or- ganismos-fermentos podem ser depositados nas partes divididas; mas não estarão estas perfeita- mente defendidas pela camada de tecidos desorga- nisados, que tende a deseccar-se, de sorte a parecer uma verdadeira eschara? Esta applicação pode, entretanto, ser vantajosa- -*©» 190 ci- mente aproveitada, depois que o pus tem deter- minado a queda desta couraça pretectora, que se forma sobre a ferida; mas especialmente quando ha receios da supervenção de accidentes, que devas- tam as enfermarias de feridos, ou o doente não tem gozado, desde o começo de seu tratamento, das van- tagens de um curativo racional. Além disto, fazendo-se sempre temer a intensi- dade da reacção inflammatoria, que se revela após o ferimento, a cauterisação dos tecidos, longe de contribuir para attenual-a, eleva-a com um certo coefficente de irritação, de modo a provocar verda- deiros estados inflammatorios, que se acompanham de abundantes suppurações, retardando assim a marcha da cicatrização. Curativo hydrotherapico — As applicações d'água fria, em cirurgia, tendem a generalisar-se de um modo admirável. Em quanto similhante medicação não foi conve- nientemente estudada, o seu emprego jamais deu os resultados que presentemente maravilham a todos os práticos, que a sabem aproveitar. E' que então pedia-se ao curativo hydrotherapico aquillo que elle não podia dar, exigindo-se de sua applica- ção o desapparecimento das manifestações phle- gmasicas, na phase mórbida em que os tecidos já -*©• 191 > 192 *®»t- tornar-se exangues, na reducção de volume dos elementos figurados, que se conchegam uns aos outros, resultando destas modificações intimas a diminuição de volume da parte, como o phenome- no mais saliente á inspecção. O frio, portanto, oppõe por seus effeitos sobre os elementos orgânicos uma barreira poderosa á reac- ção inflammatoria e á febre traumática, que diffí- cilmente se realisarão, não encontrando condições favoráveis de desenvolvimento na constricção per- manente dos capillares, e nas tendências atrophicas dos elementos figurados. Dahi resulta que, na plu- ralidade dos casos, o curativo por meio da água fria faz ceder immediatamente as dores, evita a tumefacção, vermelhidão e tensão da parte, sendo a suppuração conseguintemente reduzida, ou mesmo nulla. A superficie da ferida se cobre de uma ca- mada pouco espessa de substancia plástica, acin- zentada, que se desprende facilmente ao contacto de uma bola de fios ; os tegumentos circumvizi- nhos adquirem rugas, e a sua camada epidérmica se infiltra de liquido, resultando dahi o amolleci- mento e queda de suas cellulas. Para que, no emtanto, os bellos resultados acima apontados sejam uma realidade, convém que se façam as applicações frias com a maior regulari- dade e sem interrupção, desde a occasião do feri- -*©. 193 «sx- mento. Acabo de verificar a verdade deste pre- ceito em um caso de ferida por arma de fogo, que tive, ha pouco tempo, occasião de observar na pessoa do Sr. Dr. Cardoso Silva. Este collega recebeu no rosto trez ferimentos, dos quaes dois pareciam devidos simplesmente ao coice d'arma, e o ultimo á penetração da cápsula da espoleta. Havia encravamento de grãos de pól- vora em toda a superficie do nariz, na região jugal direita, e na conjunctiva oculo-palpebral do mesmo lado. Na occasião do accidente, comigo compare- ceu um outro collega, que concordou nas applica- ções frias, as quaes foram feitas sem interrupção no correr das primeiras 36 horas. Durante estas ap- plicações o estado do ferido foi o mais lisongeiro, de modo a contar elle no dia immediato aos seus amigos que, contra a sua expectativa, havia pas- sado uma excellente noite. Não havia dores, tu- mefacção, e nem tensão das partes offendidas; ahnms grãos de pólvora já começavam a cair da conjunctiva palpebral. Então o meu co-assistente, não comprehendendo como se podia curar um feri- mento daquella natureza, sem o emprego das tra- dicionaes pranchetas de ceroto, substituiu o cura- tivo hydrotherapico pelo ordinário. A noite que se seguiu foi algum tanto agitada para o ferido^ que no dia iinmediato apresentou-se com o rosto -*©, 194 >®x- vultuoso, e os tegumentos, nas immediações das feridas, vermelhos e fortemente tensos. O paciente começou a sentir dores intensas, que se augmenta- ram com o correr do dia, apresentando-se á tarde um estado de quasi delirio. A inflammação se ma- nifestou então por tal fôrma, que muito deve ter retardado a cicatrização das feridas. A applicação de cataplasmas foi então imposta ao paciente, em logar das emissões sangüíneas locaes, que tão racional- mente havia aconselhado o meu distincto collega o Barão de Itapoan. Depois de tão infeliz contingência, perdi de vista este doente; porém sei que no momento em que escrevo esta observação, apezar de se haver decor- rido mais de 30 dias, o Dr. Cardoso se acha ainda inhibido de cuidar de suas ocupações. Para demonstrar, entretanto, as vantagens ma- ravilhosas do curativo hydrotherapico, passo a re- gistrar neste trabalho a brilhante cura conseguida por meu honrado collega, o Dr. Rodrigues da Silva, durante a campanha do Paraguay, na pessoa do coronel Hyppolito Antônio Ferreira. Tratava-se cie um ferimento por bala de fuzil nó terço inferior da tibia esquerda, complicado de fra- ctura comminutiva deste osso. O meu destineto col- lega, desde o momento da lesão, começou com a maior regularidade o tratamento pela água fria, ->■©• 193 c.^- em irrigação continua sobre a parte. Nas primei- ras 24 horas deu-se um leve abalo na innervação, que cedeu de prompto ao uso de uma poção cal- mante . Depois disto nada mais de notável se apre- sentou. Não sobreveiu inflammação; as dores fo- ram diminutas e toleráveis, a suppuração quasi nulla, e excellente o aspecto da solução de conti- nuidade. Diversas esquirolas foram extrahidas; dahi a diminuição gradual da ferida, que cicatrizou dentro em 40 dias. Já muito antes, o exame do membro denunciava suffíciente solidez, no ponto correspondente á fra- ctura, d'onde se deprehende que a consolidação se tinha antecipado á reparação das partes molles. Trez mezes decorridos, este offícial passeava nas ruas de Montevidéo, sem de qualquer sorte trahir o grave ferimento que soffrera. Factos outros concorrem a confirmar a effícacia deste curativo. Depois do combate de Campo grande, foram encontrados pelos nossos soldados muitos feridos paraguay os, que, internados nas mattas, se haviam tratado simplesmente com as applicações frias. Foi então verificado o excellente estado de suas feridas, muitas das quaes denotavam ter sido graves, já por sua sede, já por suas complicações. Em uma serie de lições, que taes casos motiva- ->*s>» 196 -©-!- ram, mostrei os phenomenos curiosos, que se se- guem ás applicações d'agua fria em cirurgia, e quanto a pratica dellas pode esperar, qualquer que seja o processo empregado, embebição, irriga- ção continua e immersão. Em minha pratica são numerosos os casos de curas brilhantes, mediante a applicação deste me- thodo curativo, em todas as feridas contusas e por esmagamento. No anno passado tive a fortuna de reunir, na enfermaria a meu cargo, quatro casos importan- tes de cura, trez dos quaes se acham descriptos entre as Observações de Clinica cirúrgica do Sr. Araújo, livro que acaba de ser dado á luz da pu- blicidade. Em relação a propriedade que possue esse me- thodo curativo de impedir, nas feridas, as fermen- tações mórbidas, vem a propósito a menção de um facto importante, que demonstra luminosamen- te-a acção preventiva deste tratamento contra a produção dos accidentes. Quando no anno passado a enfermaria de S. Fernando, no Hospital da Caridade, ficou inficio- nada, em virtude de um caso fatal de septicemia cirúrgica, já indicado em outro ponto desta these, todos os doentes a meu cargo, que apresentavam feridas, sentiram um estado mais ou menos pronun- -;-@o 197 ca- riado de indisposição, cora febre e inappetencia, que me obrigou a dar alta a alguns, que estavam cm começo de convalescença, com receio de incom- modo maior. Entre elles se achava um doente de ferida por esmagamento, complicada de fractura comminutiva da tíbia direita, que eu curava por meio da irriga- ção continua, conseguindo afinal o mais brilhante e admirável resultado. Este doente foi o único, entre todos, que ficou indemne á manifestação septice- mica, não experimentando o seu traçado thermo- metrico a mais leve alteração. (*) Por esta forma se acha justificado o facto, quo- tidianamente observado na pratica, de não se acom- panhar este methodo curativo de febre, em todo o decurso do tratamento, e nem de dores, sendo o estado geral dos feridos o mais animador e lison- geiro. Em um doente que apresentava gangrena das partes esmagadas, tive occasião de observar e de mostrar aos alumnos, apoderados de certa admi- ração, o modo por que se operava o phenomeno debaixo d'agua. O processo empregado era o da immersão. Os tecidos mortifícados conservaram a cor nor- f * ) Todos os meus doentes tinham, junto á sua pa^eVa, um qr.alro destinado ao estudo graphieo da temperatura. -»■©• 198 '©«- mal, passando no lira de alguns dias a uni cin- zento claro. A sua consistência diminuiu notavel- mente, dando-se a desagregação molecular da parte gangrenada, que tornava em poucos momentos turva a água da cuba, ern que se achava mergu- lhada a mão do paciente. Não se percebeu jamais o cheiro gangrenoso, durante todo o periodo da eliminação, que se effectuou com alguma rapidez. Suspendendo-se em meio tratamento o emprego da immersão, notava-se, poucas horas depois, ver- melhidão e tumefacção da parte, acompanhadas de tensão e dores mais ou menos intensas. Estes phe- nomenos desappareciam, logo que se continuava a applicação curativa. O tratamento hydrotherapico não deve conti- nuar, desde que se reconhece que a ferida já se acha isenta de partes expostas á eliminação, e nas condições de cicatrizar. Isto se observa ordinaria- mente entre 19 e 20 dias. Então o methodo hydrotherapico torna-se um obstáculo á cura, que pode ser vantajosamente com- pletada pelos meios ordinários. Curativos por occlusão — A excellente e pre- ciosa ideia, que preside este methodo de tratamento das feridas, é devida, em sua maior simplicidade, ao Dr. Chassaignac. Antes delle a occlusão não encer- rava vistas scientificas bem determinadas. O illus- -*@» 199 o<3*_ tre cirurgião comprehendeu perfeitamente os pe- rigos, que podem provir para as soluções de conti- nuidade, do contacto do ar atmospherico, e inaugu- rou um methodo curativo, cujo único fim consiste no isolamento da superficie traumática. A occlusão, porém, como foi concebida primiti- vamente, não podia prestar-se a largas applicações praticas. O seu emprego ficava limitado aos pe- quenos traumatismos, não comprehendendo teci- dos heterogêneos, e nem se complicando de desor- ganisação das partes. A occlusão de Chassaignac somente tem appli- cação aos casos de feridas simples por instrumento cortante. A grande ideia da occlusão para os casos de fe- ridas contusas, e por armas de fogo de toda es- pécie, simples ou complicadas, pertence com jus- tiça aos cirurgiões allemães, entre os quaes se no- tam Neudõrfer, Langenbeck, Billroth, Lehnert e Luecke, que, com a applicação dos apparelhos de gesso nas fracturas complicadas, abriram um cami- nho luminoso para os mais importantes estudos. A cirurgia conservadora deve, em grande parte, os seus bellos resultados a esta pratica altamente racional, que tanto tem restringido o quadro das amputações nas ultimas guerras européas. Quanto ás feridas das partes molles, estava fada- --^ 200 .©«- da ao gênio eminentemente pratico do Dr. Alph. Guérin a descoberta de um processo de curativo por occlusão, que deve ser das maiores vantagens futuras. Na guerra franco-prussiana, o distmcto cirurgião empregou o algodão no curativo das fe- ridas por armas de fogo. O processo do Dr. Alph. Guérin é simples. Na occasião mesma do ferimento, e como primeiro curativo, depois de haver limpado a ferida com uma solução de ácido phenico, elle envolve a parte com uma camada espessa de algodão, que é com- primida, fortemente, sobre o membro por meio de circulares compressivas. Os curativos somente são feitos quando se tem certeza da cicatriazação ou no caso de algum accidente; porém sempre com o maior cuidado, afim de que não se de a infecção da ferida. Neste processo curativo ha a mencionar-se mais de uma vantagem. Os germens productores dos accidentes, retidos nos filamentos do algodão, não podem chegar á superficie traumática. Esta sub- stancia representa o papel de uma verdadeira rede, que apanha os germens infectantes, filtrando ao mesmo tempo o ar. Uma outra vantagem preciosa resulta da com- pressão estabelecida pela atadura, que impede, até eerto ponto, o affíuxo de liquides para a parte, e -K>- 201 •©*- por conseguinte, obsta o desenvolvimento das in- flammações e suppurações, sempre prejudiciaes á ferida. Ultimamente o Dr. Raoul Hervey, em uma memória que acaba de ser dada á luz da publici- dade, apresenta um grande numero de factos de cura, não só de feridas complicadas de toda espé- cie, como até de amputações. O professor Ver- neuil, no congresso de Lyon, manifesta-se de um modo muito favorável a este methodo curativo. Eu aceito do melhor animo o novo tratamento pelo algodão, como uma combinação muito racio- nal; porquanto a sua grande vantagem consiste em livrar da acção dos germens atmosphericos a su- perficie traumática, sem prejuízo de sua ventilação pelo ar puro, ao passo que por outro lado neutra- lisa os phenomenos congestivos locaes. A modificação feita pelo Dr. Ollier, unindo o silicato ao algodão, tem-se mostrado na pratica de uma importância duvidosa, Para completar o exame dos diversos processos de curativo das feridas por armas de fogo, devo chamar a attenção dos cirurgiões para uma outra circumstancia, que se deduz da observação, con- correndo a demonstrar a pathogenia parasitaria dos accidentes: é a vantajosa influencia dos cura- tivos raros. -*s>= 202 -v+- Offerece-se como assumpto digno de reparo a freqüência com que os curativos diários e prolonga- dos, nos hospitaes atacados pelas infecções locaes das feridas, expõem-nas ao contagio, ao passo que nos processos em que elles são raros e espaçados, como no tratamento de Alph. Guérin, no de Lister e nas applicações hydrotherapicas, similhantes ac- cidentes raramente se mostram. Este facto de observação clinica quotidiana vem demonstrar de um modo peremptório, nada dei- xando a desejar-se, a natureza zymotica destes estados mórbidos, que devem ser previstos pelo tino e intelligencia do cirurgião, podendo ser evi- tados com vantagem mediante processos curativos adequados. V DESNUDAMENTOS DAS FERIDAS ^^ s questões relativas aos desbridamentos teem r^3=sido, desde longa data, debatidas na Sciencia, occupando um logar de honra no estudo das feri- das por armas de fogo. Diante dos resultados da observação hodierna, parece que todos os grandes esforços, empregados pelos mais eminentes cirurgiões, se achrm irre- missivelmente prejudicados. O emprego das inci- sões, para a dilatação do canal de uma ferida, não pode e nem deve inspirar-se em vistas inalteráveis e systematicas. E' assim que as questões, suscitadas na pratica, sobre os desbridamentos -preventivos são escassas -ks>* 204 «©«- de luz o de vantagens, em relação ao tratamento das feridas. O desbridamento, sendo uma operação, não pode ser empregado sem indicação especial. Considerar- se indeclinável a necessidade das incisões, em toda a sorte de feridas por armas de fogo, fora conce- ber-se um absurdo, que nem por si tem o apoio do bom senso. Não se previne um accidente qualquer, senão dirigindo a acção dos agentes therapeuticos sobre as manifestações mórbidas, surprendidas em sua fonte etiologica. Alargar o campo do traumatismo é abrir mais numerosas brechas á invasão dos ger- mens infectantes, e offerecer um theatro mais vasto aos phenomenos zymoticos. Quem, por ventura, julgará racional ajuntar-se á lesão, defendida por uma eschara protectora, a incisão dos tecidos circumvizinhos, com divisão regular dos vasos, que ficam expostos, sem defeza, ás injurias do ar atmospherico ? Seria o caso de offerecer a Sciencia a opportu- nidade para os accidentes, que a própria violência traumática providencialmente negou. Entretanto, a urgência e importância de certas indicações especias não pode ser illudida, quando, para obter-se a cura, faz-se nescessaria a extracção —>*$-> 20.") t©-«— dos corpos estranhos, que d'outra sorte não se realisaria. Geralmente se conhece o resultado, ás mais das vezes infeliz, da conservação dos projectis no seio dos tecidos, e quem se lembra dos abscessos nu- merosos, que estabelecem outros tantos trajectos fistulosos atravez das partes molles, quem tem lu- tado com os perigos dos pleugmões e das suppu- rações inesgotáveis, assim como das dores que acompanham similhante complicação, quando não é ella a tempo removida — não duvidará empregar o desbridamento das feridas, immediatamente de- pois de taes lesões. As incisÕes só teem então van- tagens mecânicas, contribuindo a alargar o canal para sahida do corpo estranho, cuja presença assim desarranja as funções da parte, compromettendo muitas vezes a vida do paciente. O que, porém, cumpre fazer em relação a estes casos, no fim cie attenuar-se o perigo de similhante operação, é evitar, sempre que for possivel, o uso do bisturi, e somente serem os desbridamentos pra- ticados, como medida ultima, quando o emprego dos meios apropriados tenha sido completamente frustrado. Graças aos progressos da cirurgia moderna, é possivel muitas vezes a substituição dos instru- mentos cortantes por outros agentes de dierése. Antes de qualquer outro se impõe, pela facilidade com que são divididos os tecidos, a lamina can- dentc do galvano-càustico thermico, achando em taes circumstancias a applicação talvez a mais ra- cional, de todas para que tem sido aconselhadas. Na falta deste meio, que diffícilmcr.te poderá ser conduzido ao campo de batalha, lembrarei ainda o uso de cauterios incisivos, similhantes aos adoptados pelo Dr. Manrique, do México, para a extirpaÇão de tumores hemorrhoidaes. Estas lâ- minas, ao mesmo tempo cortantes e cauterisantes, podem ter configurações variadas, segundo a von- tade do operador e as necessidades praticas; são de um preço insignificante, e tão portáteis como qualquer bisturi. Pela intervenção destes meios, se produz ao lado da ferida principal uma outra, que com ella mais ou menos se assimilha por seus caracteres, sendo igualmente defendida, ao contacto do ar e dos pe - quenos organismos em suspensão, a superficie traumática por uma camada de tecidos, sob a fôr- ma de eschara, que com o tempo se espessa e se endurece, a ponto de tornar-se impermeável ás in- vasões parasitárias. Além de taes vantagens, transparece nesta im- portante applicação a sua qualidade hemostatica, devida á acção do cauterio actual, que, na eschara -*S>° 2ü7 -S?-;- produzida e na coagulação do sangue nas extremi- dades dos vasos seccionados, levanta barreiras ordinariamente insuperáveis á columna sangüínea, impedindo as hemorrhagias. Quanto ao mecanismo destas incisões, nada ha de mais fácil para o cirurgião, que, como accesso- rio, se limitará ao uso de um gorgerete de madeira, o qual deve ser levado ao fundo da ferida, offere- cendo a sua concavidade, excavada em rego, para o lado em que se tem de praticar a dilatação do canal traumático. Immediatamente depois de pra- ticados os (lesbridamento.s, cobre-se a parte com compressas embebidas d'água fria, afim de neu- tralisar o calor sentido pela parte, e as dores que acompanham a applicação cáustica. Em taes circunstancias, o curativo hydrothera- pico definitivo é o mais racional, e ao mesmo tempo o que melhores vantagens pode offerecer aos feridos. VI AMPUTAÇÕES fÃ\ s ideias emittidas precedentemente, sobre os i/pCcurativos das feridas por armas de fogo, pa- recem ao primeiro exame muito restringir o quadro das amputações, em relação a grande freqüência com que estas operações são praticadas no campo de batalha. Ao contrario disto, porém, entendo que jamais se pode deixar de attender ás numerosas indica- ções, que se levantam na pratica militar, em vir- tude de estados complicadores, que não permittem a cura sem a intervenção operatoria. Esta poderá ser muitas vezes temporisada, não resultando para o paciente o prejuízo da vida, poupada á custa -*©■ 210 *&*- de perigos sem conta e com a certeza de uma existência tantas vezes inútil, e quasi sempre cons- tituindo-se em um verdadeiro fardo ! No estudo das circumstancias que reclamam uma medida de conseqüências tão deploráveis, não poderá influir por certo a observação, que não toma por base a natureza das alterações anatômi- cas, sua sede e extensão, e bem assim a sua pos- sivel influencia sobre o estado geral e a vida do paciente. O curativo, por mais racional que seja, limita a sua benéfica acção, nem sempre aproveitável em todos os casos, a prevenir os accidentes das feridas, e até certo ponto neutralisal-os. Onde, entretanto, os recursos para o que se refere aos estragos pro- duzidos pelos projectis nos diversos tecidos, ór- gãos ou apparelhos ? Se a arte comprehende e se convence da neces- sidade de isolar a ferida do contacto do ambiente nocivo, e se dispõe dos meios de realisar tão im- portante desideratum, fallecem-lhe, ao contrario, os recursos para compensar o immenso desperdício orgânico, que resulta das impressões moraes vivas, das dores, e principalmente das perturbações nu- tritivas locaes, que de ordinário estão na razão directa da intensidade das lesões. Os phenomenos de reparação dos tecidos de- ->•©> 211 «€*- mandam uma certa actividade de seus elementos, e, como elles, reconhecem limites, que lhes são traçados pela harmonia funccional. O que ultra- passa estas raias se torna incompatível com a vida. Ha lesões tão vastas, e de um prognostico tão grave, que não podem attingir a cura sem grande mutilação do organismo, quando, por ventura, os membros não são truncados pela própria causa vulnerante, a qual desta sorte ensina ao pratico o gênero de intervenção á que deve elle recorrer, nos casos outros em que correm risco os dias cio pa- ciente. Então encontram-se feridas irregulares, lacera- das, tocadas de mortificação em multiplicados pontos de sua superficie, eriçadas de pontas ósseas em todas as direcções, resultando tudo da acção de uma bala ou de uma bomba, que não teve a quanti- dade de movimento precisa para produzir o arranca- mento do membro. Quem duvidará da indispensabilidade, e, ainda mais, da urgência cia amputação em taes condi- ções, quando ella vem substituir as escabrosidades e as dilacerações do coto traumático pela superfi- cie igual e nivelada, que sáe tantas vezes, como um primor de arte cirúrgico, das mãos do operador, que conhece, como deve, sua profissão ? Ninguém, certamente, vacillará em reconhecer -><©* 212 *©-i- a menor gravidade da ferida praticada pela faca do cirurgião, em comparação á marcha sempre du- vidosa dos ferimentos complicados de contusão e de lacerações, que provocam reacções as mais vio- lentas do lado das partes offendidas, suppurações, cuja abundância e duração não se podem prever, alem dos accidentes a que se acham expostos por causas independentes da economia. Assim também a amputação diminue a gravi- dade do caso, quando tem sido compromettida uma grande articulação, com lesão das extremi- dades articulares, dilaceraÇão da synovial, contu- são e despedaçamento das partes circumvizinhas. Alterações tão profundas e extensas devem mo- tivar tamanhos desarranjos das secções contíguas, arrastam comsigo perturbações tão profundas, que, ainda nos casos de certa gravidade para a amputa- ção mais perto da raiz do membro, é sempre pre- ferível o emprego deste meio operatorio ao trata- mento conservador. As indicações desta operação são numerosas e variadas, não sendo possivel traçar-se um quadro theorico completo de todas as circumstancias, que a tornam indispensável pelos perigos e riscos do momento. Para isto seria mister que sempre se podesse avaliar a marcha de certos ferimentos, e suas teu- ->«. 213 »©<- dencias para a cura ou para a morte, as quaes po- dem ser desviadas por tantas e tão multiplicadas causas, correndo então por conta do tino, sagaci- dade e pratica do cirurgião a preferencia do me- thodo a empregar. Entretanto, em certos casos a amputação parece racional, em razão das alterações mórbidas, que podem ser evitadas, e que se derivam directamente das lesões primitivas. Se a artéria ou veia principal de um membro se acha compromettida no ferimento, a opportuni- dade se impõe como a melhor para o desenvolvi- mento da gangrena. No primeiro caso, as partes dei- xam de offerecer a actividade nutritiva segundo a intensidade normal, a vitalidade se restringe con- sideravelmente, podendo não ser compensada pela circulação collateral, susceptível de prejudicar-se pela mais simples circumstancia local, principal- mente pela tumefacção do membro. Na lesão da veia, a vitalidade pôde ser levada pelas artérias ás partes offendidas ; porém não sendo possivel a estas desengorgitarem-se da grande quantidade de sangue venoso, tem logar a stase sangüínea, com todas as suas conseqüências. Em ambas as hypotheses, a gangrena é o phe- nomeno mais freqüente e de natural explicação. E' por isso que cumpre ao cirurgião resolver ->©» 214 '■.&-;- as duvidas curativas, propondo em certos limites a amputação. Estes limites são deduzidos da ob- servação aprofundada e rigorosa das disposições orgânicas, e do estado anatômico das partes, que podem deixar prever a possibilidade do restabele- cimento da circulação. Certas complicações, como a hemorrhagia, mos- trando-se rebeldes a todos os meios aconselhados, e as lacerações dos nervos em casos graves, indicam algumas vezes o emprego da amputação, que fa- cilita, é verdade, a ligadura dos vasos, sustando a hemorrhagia, mas que se mostra insuffíciente, na grande maioria dos casos, como meio de dcbellar os espasmos traumáticos ou o tetanos. As fracturas complicadas teem sido contempla- das no numero das indicações desta operação. E' isto, porém, assumpto para o mais serio exame; porque os factos de cura de taes lesões, pelos pró- prios esforços do organismo, são tão numerosos, que collocam o cirurgião, quasi sempre, em uma verdadeira perplexidade. A questão não pode ser resolvida de um modo decisivo e bem determinado; pois que influencias contrarias e desconhecidas são susceptíveis de mo- dificar os phenomenos, por que se costumam reve- lar os ferimentos de tal sorte complicados. Entre todas, as circumstancias que mais vezes indicam ->^ 215 e.--<. a amputação são — a extensão da fractura e da fénda óssea, os estragos, lacerações e contusões das partes molles. Conservar-se um membro em taes condições é esquecer-se das conseqüências em extremo graves, que a inflammação, com suppuração de uma ferida, complicada de esquirolas, e a eliminação cias par- tes mortificadas podem arrastar após si, não ob- stante a maior habilidade do pratico, e os seus me- lhores recursos. Nos casos em que o paciente se apresenta mui- tas semanas e até mezes depois do ferimento, as cousas são indubitavelmente de mais fácil decisão para o pratico. Quem deixará de amputar um membro já de- formado, crivado de fistulas era todas as direeções, e em largas superfícies, onde os tecidos se achara em completa regressão mórbida, e a suppuração prosegue triumphante em sua obra de extermínio, arrastando o desgraçado doente para as bordas do túmulo ? E, no emtanto, um estado tão desanimador é quasi sempre conjurado pela amputação, que se faz scsmir do mais brilhante e admirável êxito. A alegria renasce, logo nos primeiros dias depois da operarão, as forças nutritivas se levantam, o appetite volta, não se fazendo muito esperar a cura, ->-©' 21G <*©*- Factos de tal natureza são por demais freqüen- tes na pratica, e é provavelmente nelles que os me- lhores cirurgiões se inspiram, quando consideram as amputações praticadas nos indivíduos musculosos e robustos mais graves do que nas pessoas magras e enfraquecidas. Parece que nestes, effectivamente, ha menos seiva orgânica para alimentar o incên- dio mórbido. Os phenomenos nos athletas arreme- dam mais ou menos a grandeza e a pujança de suas fôrmas. As amputações, consideradas em relação ao tem- po em que são praticadas, teem sido divididas em immediatas, quando são feitas logo depois do fe- rimento, dentro das primeiras 34 horas; secunda- rias, se são empregadas após a reacção inflamma- toria e a febre traumática, e tardias ou consecuti- vas, passado algum tempo, que se pode contar por mezes e ás vezes por annos. Esta ultima classe parece escapar-se um pouco da espécie mórbida; porquanto o caracter de chro- nicidade das feridas por armas de fogo muito con- tribue a approxiniarem-se taes lesães dos padeci- mentos propriamente orgânicos, de que contraem os principaes traços physionomicos. E' muito provavelmente em virtude da simi- lhança de caracteres, e conseguintemente de Índo- le, que estas amputações tanto se parecem em re- -**:->■> 217 ns*- lação á sua gravidade e conseqüências, ás que são indicadas por uma lesão orgânica, e conhecidas sob o nome de patliulugicas. A mais intrincada discussão se tem suscitado, no campo da cirurgia militar, sobre a espécie de amputação, a que se deve dar preferencia nos ca_ sos de feridas por armas de fogo. As opiniões se teem extremado, e, graças ao espirito de systema, os trabalhos estatísticos modernos adquiriram a maior perfeição e importância. Grande parte dos cirurgiões pratica e aconse- lha as amputações immediatas, outros se assus- tam diante de seus revezes, e proclamam as ampu- tações consecutivas tão vantajosas, quanto as pathologicas, das quaes muito se approximam, já pelo estado geral, que se resente das longas perdas do organismo, já pela similhança dos processos physio-pathologicos. Pelo que respeita ás opera- ções secundarias, todos os práticos se acham accor- des em consideral-as absurdas e perigosas. Os argumentos em tão renhida discussão só po- dem encontrar base legitima na estatística; por- que as vistas puramente theoricas são susceptíveis de falhar, na pluralidade das circumstancias. Infelizmente os resultados numéricos, invocados por um e outro lado, não elucidam a questão; por- que elles variam no tempo e nas diversas locali- -+@« 218 ci- dades, em que são observados, differindo profun- damente entre si. Provas disto encontram-se principalmente na guerra da Criméa, em que a mortalidade depois das amputações, no exercito inglez, não corres- pondeu á experimentada pelo exercito francez, sendo as operações immediatas, no primeiro, mais felizes do que nos hospitaes francezes, onde sorti- ram melhor resultado as operações consecutivas, como se vè do resumo que se segue, extrahido cie um trabalho do Dr. A. Guérin. Amputações imme- diatas ......... 844 Exercito inglez \ Mortos.......... 193 Amputações tardias 154 Mortos.......... 80 Amputações imme- diatas ......... 3234 Exercito francez ^ Mortos......... 2337 Amputações tardias 852 Mortos.......... 600 Desta, nota resulta que os cirurgiões inglezes foram mais felizes nas amputações immediatas, sendo a mortalidade de 23 %, ao passo que para as mediatas foi de 52 %, dando-se exactamente o inverso para com os práticos francezes, que tive- -*•©* 219 ,.--,- ram, nas amputações consecutivas, uma mortali- dade de 70 %, e nas immediatas de 72 %. Entretanto o pessoal dos dous exércitos não va- riava sensivelmente; o gênero de projectis e meios outros de guerra, empregados pelo inimigo,, eram para ambos iguaes; os cirurgiões francezes eram tão abalisados e práticos, quanto os inglezes; as circumstancias hygienicas somente podiam diffe- rir, ou então as de raça. Eis, portanto, condições, que são capazes de modificar profundamente os resultados operatorios, tornando-os incertos e variáveis. Como attingir-se, pois, uma conclusão favorável a qualquer das duas opiniões ? Ainda neste ponto, eu entendo que não se deve ter ideias exclusivas. Se em algumas campanhas são as amputações immediatas melhormente suc- cedidas, noutras a mortalidade sobe a tal ponto que o pratico é obrigado a contemporisar, diante dos innumeraveis e repetidos revezes operatorios, que aniquilam completamente a sua coragem. Uma prova bem triste desta verdade tivemos no Paraguay, onde as operações immediatas, pratica- das pelos mais distinetos cirurgiões, deram resul- tados em geral desastrosos. Entretanto, ao tempo que isto se dava em Comentes, Humaytá e As- sumpção, nos hospitaes de .Montevidéo e Pr.cnos- Ayres, as amputações, que ahi somente podiam ser consecutivas, foram coroadas do mais feliz êxito. Assim na escolha do momento para as operações no campo de batalha, a cirurgia não pode offerecer preceitos absolutos. Ainda uma vez fíxz ella um appello sincero á pericia e tino do pratico, quanto ao alvitre mais útil e proveitoso aos feridos. Reconhecida a gravidade das amputações imme- diatas, as indicações se restringem aos casos em que torna-se completamente impossível temporisar. O tratamento expectante se impõe como o mais prudente e judicioso. Não é inclifferente a escolha do methodo e pro- cesso operatorios, quanto á influencia que podem elles exercer sobre o resultado do tratamento, do mesmo modo que não são idênticas as condições da ferida, quando é ella reunida por primeira ou se- gunda intenção. O methodo que mais se recommenda na pratica militar é o circular, cujas vantagens consistem na menor extensão da superficie traumática e na au- sência de espessas camadas de músculos, que con- correm, na amputação de retalhos, a retardar a cicatrização. Todavia o Dr. Azam, de Bordeaux, acaba de offerecer um novo processo da amputação de retalhos, que visa, como ponto de mira, a occlu- -*£■•■ 221 »«*- são da ferida. ()s retalhos lateraes são affrontados, e mantidos em contacto por pontos de sutura su- perficiaes e profundos, muito similhantes aos que se praticam na ferida da parede abdominal, na ope- ração do ovariotomia, não faltando, se quer, a in- dispensável camada de collodio para separar a solução de continuidade da acção do ar atmosphe- rico e de seus germens. Comprehende-se perfeitamente que, por mais vantajosa que possa ser na pratica a operação do Dr. Azam, melhores resultados serão colhidos do emprego de cuidados iguaes, quando se pratica a amputação pelo methodo circular. O processo operatorio deve também influir para a obtenção da cura. Neste sentido se apresentam, disputando a preferencia, alguns processos, que podem ser empregados sem grande differença quanto aos resultados, os quaes ficam igualmente dependentes do modo de curativo adoptado. infelizmente, nem sempre na cirurgia militar é dado ao cirurgião a escolha do methodo ou pro- cesso. A sede e a natureza dos estragos, a confi- guração das partes divididas, a extensão das lesões cutâneas e as considerações prognosticas, relativas ao caso, muitas vezes impõem ao pratico a condu- cta operatoria, que elle deve adoptar. -+&•• 222 -^- Era relação ao modo de reunião, nenhuma regra absoluta se pôde erigir na pratica. Alguns cirurgiões fecham a ferida completa- mente ao accesso do ar, mediante pontos de sutura, outros entregam-na á suppuração, approximando brandamente os bordos da ferida por meio de tiras agglutinativas, o resto aconselha a sutura em parte da solução de continuidade, deixando um canal suffíciente para a sahida dos líquidos. O proceden- do pratico pôde variar segundo as circunstancias que o cercam, ou conforme suas vistas clini- cas. (•) Todos estes modos de reunião das feridas, porém, podem dar bons resultados, comtanto que sejam seguidos os methodos curativos mais apropriados ao caso e mais racionaes. E' certo que, mau grado a ausência de similhan- tes precauções, pôde a cura ser obtida; mas, nos casos em que o inexperiente batei se embate con- tra os escolhos, eu jamais desculparei o cirurgião, que disser : — eu não cuidei. (•) A minha condueta a respeito se acha descripta nas Conferências de Clinica cirúrgica, publicadas em 1671, a que o leitor recorrerá com proveito. VII PRATICAS CONSERVADORAS , v\^ cihckgia conservadora gerou-se com os te- /\^niores do cirurgião, tornou-se indispensável diante cie seus constantes e numerosos revezes operatorios, aperfeiçoou-se, e ganhou domicilio na clinica, com as conquistas praticas contemporâ- neas. Ella não teve origem no espirito de systema, que é sempre estéril e absurdo ; porque cega-lhe a luz dos factos, e só pode viver nas trevas do em- pirismo. A cirurma conservadora libertou-se dos velhos preconceitos com os progressos da therapeutica -ms>« 221 "w- moderna, e sob o influxo luminoso da Histologia e Phvsiologia pathologicas. Na França os trabalhos estatísticos de Hutin e Chenu muito contribuíram a moderar o ardor e zelo dos práticos, que só acreditam na infallibilidade da faca ou do bisturi, e não concebem que a Scien- cia possa progredir sem deixar no terreno pratico as suas pegadas ensangüentadas. O afan dos cirurgiões, na Inglaterra, em se cele- brisarem por unia audácia operatoria descommunal, tem retardado de alguma sorte neste paiz os pro- gressos da cirurgia conservadora. As opiniesõ de Hunter tem sido completamente despresadas; e, no emtanto, foi o distincto pratico que traçou o esboço mais simples desta sciencia esperançosa, que não subsiste por seu orgulho, mas pela grande somma de bens que promette á humanidade. A eschola alleraan coraprehendeu melhor as ve- lhas e systematicas praticas de Bilguer, ampliando o circulo das applicações cirúrgicas, tendentes á conservação dos diversos órgãos da economia. Ao passo que procurava resolver os problemas opera- torios os mais difíiceis, attingia, ao mesmo tempo, a perfeição na confecção de apparelhos, que teem por fim realisar as condições favoráveis de repouso, sem as quaes as forças reparadoras se esvaem era pura perda. Os cirurgiões de Berlim, confiados na -*©<> 2'25 ks*- franca tendência do organismo para favorecer os processos curativos, só viram nas alterações do esqueleto as causas, que mais vezes obstam os re- sultados do tratamento conservador. Para remover estas causas é que elles teem pro- curado empregar a resecção de preferencia á am- putação, que condemna indistinctamente as partes sans com os tecidos compromettidos pela acção dos agentes vulnerantes. Na America do Norte iguaes tentativas foram emprehendidas, no sentido de tornar as operações conservadoras mais conhecidas, e mais criteriosa- mente julgadas. Durante a guerra da secessão os cirurgiões americanos conseguiram os melhores resultados de similhantes praticas, transmittidas directamente d'AUemanha. Não obstante os esforços dos homens os mais distinctos, nesta ordem de estudos, a estatística nada tem por em quanto de animadora, contra o que se devia esperar das vantagens colhidas na pratica dos tempos de paz, em relação a similhante gênero de intervenção operatoria. Os preciosos resultados alcançados, nos casos em que a resec- ção surte o desejado effeito, desafiam, entretanto, novos aperfeiçoamentos nos processos até hoje empregados, que, tantas vezes, a exemplo do que -X3>' 226 *©*- se tem dado para com a ovariotomia, modifica fa- voravelmente os dados estatísticos. Nas praticas modernas, não se trata de substi- tuir operações relativamente benignas. Isto seria de uma importância medíocre, em comparação aos perigos que seguem de perto a nova intervenção conservadora. As resecções teem sido recommendaclas para os casos em que a amputação é dos mais desfavorá- veis effeitos, como acontece á da coxa, que é com justiça considerada o opprobrio da cirurgia. As primeiras resecções do joelho não anima- ram os práticos a continuar em seu emprego, sendo preciso que se apresentassem os trabalhos impor- tantes de Mulder, Crampton e Syme, que modifi- caram, com quanto em insignificante proporção, a estatística desfavorável ainda depois das tenta- tivas de Moreau. A aceitação desta operação, na pratica, data dos trabalhos allemães e inglezes em 1830. Textor, Fri- cke, Heusser, Demme, Heyfelder, Stromeyer, Fis- cher e diversos outros cirurgiões contribuíram a tornar esta operação menos temida, de modo a ser ella modernamente empregada, no tratamento das feridas por armas de fogo, na Inglaterra, Rússia, Allemanha, França e America do Norte. Entretanto, em sua applicação a similhantes le- -><©<> 227 e©^- sões, e em geral aos casos traumáticos, os resul- tados não teem correspondido ao muito que se devia esperar, attentas as vantagens adquiridas nos casos pathologicos. Apezar de todas as modificações introduzidas na pratica dos processos operatorios, a sua estatistica é ainda superior em mortalidade á amputação da coxa, que a todo transe tem-se pretendido riscar do quadro das operações racionaes. Conforme Fischer, a amputação da coxa dá os seguintes algarismos de mortalidade: na Criméa, para o exercito francez 90 %, para o inglez 55 %\ na Itália Gl %; na America do Norte 47 %\ o que alcança a média de G8 %. Para a resecção do joelho, segundo o quadro estatístico offerecido por Cousin, cm um total de 44 operações se encontram 38 mortos, e apenas seis casos de cura, o que cor- responde a SG %. Em taes condições, poderá a resecção do joelho substituir com vantagem a amputação da coxa nas feridas de guerra? As verdadeiras indicações para a nova operação não se acham por ora convenientemente determi- nadas, sendo para desejar que as tentativas futuras imprimam uma modificação favorável ao processo operatorio, de modo a attenuar a sua gravidade. Ultimamente as vistas dos cirurgiões, em Ber- -*s>» 228 *©»<- lim, se tem volvido para as praticas tendentes a substituir a desarticulação da coxa. A resecção da cabeça do femur já tem sido praticada em um grande numero de casos, quer pathologicos, quer traumáticos. Sendo das maiores vantagens no primeiro caso, em que os factos de cura sem perda das funcções do membro já são numerosos, em relação aos feri- mentos de guerra, esta operação tem-se mostrado muito inferior em resultados ao que parecia pro- metter. Os revezes são numerosos nas mãos dos melhores cirurgiões, taes como Langenbeck, Ri- chter, Hueter, Billroth, Küster, etc. E* muito limitado o numero de curas obtidas depois do emprego da resecção do quadril, e ainda nestes casos, como se deu com os doentes de Lan- genbeck, Nelaton e Richter, o estado do membro não compensou os trabalhos e os perigos, por que foi comprada a sua conservação. O mesmo não se pode dizer a respeito de algu- mas resecções das extremidades articulares, prin- cipalmente nos membros superiores, onde de pre- ferencia devem ser ellas empregadas, sempre que se trata de casos em que os estragos locaes e as de- sordens funccionaes se limitam a uma pequena ex- tensão, e quando se adquire a convicção de não haver fenda do osso. -*©« 229 c<^<- Nesta conformidade, a resecção da cabeça do hu- merus offerece as vantagens mais assignaladas so- bre a desarticulação, que, mau grado a sua beni- gnidade relativa, deve ser em um grande numero de casos abandonada, em favor da conservação do membro, que mais ou menos garante ao infeliz o pão para subsistência, que é ganho pelo trabalho. Algumas outras operações, igualmente conser- vadoras, se teem modernamente rehabilitado. Acham-se nestas circumstancias a trepanação e a sequestrotomia. A primeira é quasi sempre uma operação immediata. Ella tem a mais vantajosa applicação nos ferimentos penetrantes do craneo, quando ha complicação de corpos estranhos, ou nos casos de derramamentos, hemorrhagias e absces- sos, que podem ser fataes em virtude da compressão do cérebro. Um exemplo desta operação coroado de feliz êxito já foi mencionado nesta these. A trepa- nação pode ser também empregada para a extrac- ção de projectis, encravados nos ossos, e de seques- tros invaginados. A sequestrotomia, que consiste em praticas tendentes á abertura do canal ósseo, com o fim de dar sahida ás partes ósseas mortifi- cadas, muitas vezes evita deploráveis mutilações, como se verifica no caso referido á pag. 8(.). Entre os meios de que ainda dispõe o tratamen- to conservador activo, devem ser especialmente -*©' 230 'êx- mencionados os apparelhos modelados. Destes os melhores são inquestionavelmente os de gesso, e devem ser constantemente preferidos a outros quaesquer, já pela facilidade com que podem ser empregados no campo de batalha, já pelo seu pre- ço reduzido, e mais do que tudo pela compressão regular, estabelecida no membro ferido, e a con- tenção exacta dos fragmentos nas fracturas com- plicadas. Estes excel lentes apparelhos são de uso geral n'Allemanha, graças aos brilhantes resulta- dos colhidos na guerra de 1870. Elles são formalmente complicados nos ferimen- tos de fractura, em todas as espécies de resecções, na epiphyse ou na diaphyse dos ossos, constituindo o seu complemento indispensável. O uso dos apparelhos de gesso tem se mostrado favorável até nas feridas das partes molles, não ob- stante os pueris receios de pretendidos estrangula- mentos . Os melhores apparelhos deste gênero parecem ser o de Neudõrfer e o do professor Herrgott, de Strasburgo, o ultimo dos quaes já é empregado em Pariz pelo Dr. Demarquay. O primeiro é de maior perfeição, e ainda mais de uma solidez á toda prova, applicando-se a sub- stancia immediatamente sobre a pelle, despojada de cabellos, e coberta por uma camada unetuosa. -x^ 231 o©* A compressão exercida por estes apparelhos é de tal o -dcm que, levantados no meio do tratamento, os doentes reclamam com instâncias o seu renova- mento, em virtude das dores, que então se apresen- tam, e as mudanças desfavoráveis de suas feridas. Esta pratica da cirurgia conservadora é mais um exemplo do quanto vale a compressão no tratamen- to de similhantes lesões, confirmando as opiniões consignadas em minhas Conferências de Clinica ci- rúrgica, ás quaes envio o leitor que desejar conhe- cer os bellos resultados offerecidos por este pre- cioso methodo curativo. Na pratica da cirurgia conservadora, muitas ve- zes são necessários desbridamentos, abertura de fo- cos purulentos, extracção de esquirolas ósseas e até ligaduras de artérias. Em relação a esta ultima operação, certamente a mais importante dentre as mencionadas, as opi- niões variam, quanto ao logar em que se deve pro- curar os vasos compromettidos, e passar a laçada constrictora. Alguns cirurgiões seguem a pratica de Dupuy- tren, que ligava a artéria acima da ferida, a maior parte adopta os conselhos de Guthrie, procuran- do e ligando o vaso na própria solução de conti- nuidade, que é dilatada, no sentido de descobrir-se a origem da hemorrhagia. -v©> 232 c©-i- A ligadura na ferida mesma, sempre que for possivel, será empregada de preferencia á pratica de Dupuytren, que tem indicações muito mais limi- tadas. Ella tem por si a quasi certeza de se impedir uma hemorrhagia ulterior ; por quanto são a um tempo ligadas as duas extremidades que dão san- gue. Similhante conducta operatoria satisfaz o es- pirito; porque parece que a cirurgia deve pretender sempre resultados completos. Descendo, porém, á analyse dos factos, é que se vé o quanto é este processo difíicil na pratica dos hospitaes militares, e como pode elle trahir a expe- ctativa clinica. Em uma ferida, tantas vezes profunda, em um membro volumoso pela abundância de massas musculosas, como se adquirir a certeza do vaso offendido, para caminhar-se com o bisturi em sua procura? E ainda depois de praticadas duas ligaduras, quem afíirmará que as extremidades da mesma artéria tenham sido encontradas, e não vasos dis- tinctos ? A duvida permanecendo no espirito do operador, elle não tem o direito de tranquillisar-se sobre a vida do paciente, que continua a correr o risco de ser arrebatada por uma hemorrhagia. -*@° 233 e®*- Depois, para conseguir-se qualquer resultado positivo, é indispensável dividir camadas profun- das de tecidos, cuja incisão só por si pode augmen- tar a gravidade do caso, por um certo crescimento das perdas sangüíneas. Nos logares em que os vasos são numerosos, e formam multiplicadas anas- tomoses, como na região palmar e plantar, a liga- dura na ferida c uma tarefa ingrata, não ficando o pratico isento de recorrer mais tarde ao methodo cie Anel. A's luzes e perícia do cirurgião compete a escolha do proceder, que deve elle ter, devendo sempre attender ás circumstancias de ordem clinica e ana- tômica, na escolha dos meios, com que se propõe a combater estes casos, felizmente raros nas feridas por armas de fogo. Quando se procura a conservação do membro, o tratamento pôde ser activo ou simplesmente expe- ctante. No primeiro caso, já foram mencionados os diversos modos de intervenção cirúrgica, e o quanto se deve delles esperar. A respeito do segundo, apenas se reclama o repouso do paciente, a dieta e o curativo das feridas, no intuito de moderar a reac- ção inflammatoria, diminuir a violência das dores? combater a febre traumática, e mais cio que tudo evitar os accidentes, que tantas vezes, somente por si, constituem a gravidade inteira do caso. -*@o 234 c©*_ Além do curativo, que se compõe do arranjo dos meios empregados topicamente, quasi sempre, nas primeiras horas que se seguem ao ferimento, é conveniente administrar-se alguma poção excitante quando ha estupor, e antispasmodica nos casos em que se fazem receiar abalos da innervação. Logo que a suppuração se estabelece, cumpre ao cirurgião alimentar bem os feridos. Elles devem usar cie um regimen reparador e analeptico. O uso dos tônicos é em geral reclamado. Freqüentemente a febre apresenta-se em verda- deiros accessos intermittentes, que exigem doses seguras e repetidas cie sulfato de quinina. Esta substancia combate também com certa efficacia os calefrios, que se observam na phase suppurativa, e que correspondem, ordinariamente, á epocha, em que começa a realisar-se a eliminação das partes desorganisadas. A's vezes, para se compensar mais ou menos as perdas do organismo, que desde a occasião do ferimento tanto avultam, ainda mesmo que não se revelem manifestações pyreticas, con- vém usar das preparações tônicas, entre as quaes sobresáem os preparados de quina alcoolisados. Quando a reacção inflammatoria mostra-se ex- cessiva, e causa dores muito intensas, o pratico, devendo temer algum transtorno na marcha da ferida, que pode então ser acommettida pela gan- -*©<» 235 <>©*<- grena, ou por uma suppuração copiosa, empregará com as maiores vantagens as emissões sangüíneas locaes. Algumas vezes basta a applicação de um pequeno numero de sanguesugas, nas immedia- ções da ferida, para desengorgitar favoravelmente os tecidos, que recuperam as suas propriedades nutritivas, prejudicadas pelas conseqüências do excesso de irritação. 0 uso interno de limonadas ácidas e de bebidas diluentes e mucilaginosas, para combater o excesso de producção de calor, e dos preparados de mor- phina para moderar as dores violentas — é recom- mendado por todos os práticos, como podendo ser de grande allivio aos feridos. Os diversos accidentes serão combatidos com certo vigor, desde que se apresentam as suas pri- meiras manifestações, que cumpre ao cirurgião a tempo comprehencler, empregando em seguida as cautelas indispensáveis, no intuito de impedir no- vas entradas do elemento zvmogeno na torrente circulatória. No tratamento destes estados mórbidos, a sorte do finado depende de ser a sua origem parasitaria justamente attendida nas prescripções therapeu- ticas. Assim, não se deve vacillar, na imminencia mórbida ou em pleno perigo, no emprego de doses lar "as de sulfato de quinina, que, administradas com confiança e intelligencia, menos vezcr; pormit- tirão ao pratico arrepender-se, do que nos casos em que a substancia é empregada por mão igno- rante e medrosa. O tratamento consistirá em applicações ininter- rompidas de ácido phenico, o que é possivel fazer- se sem que seja descoberta a ferida. Em tão peri- gosa conjunctura, a cauterisação da superficie traumática pode offerecer as maiores vantagens, destruindo, em seu berço, os germens-fermentos. Quando se apresentam os primeiros casos de in- fecção zymotica em uma enfermaria de feridos, a remoção dos doentes impõe-se como a mais inde- clinável necessidade. Esta medida é da mais alta importância, e de vantagens manifestas, já em pro- veito dos próprios affectados, porque ahi a morte os aguarda, já em beneficio dos companheiros, para os quaes elles constituem outros tantos focos de infecção, que se derramam, fazendo novas vi- ctimas. No campo de batalha, os infectados serão man- dados para barracas apropriadas, armadas em lo- gar não muito distante dos hospitaes permanentes, afim de continuar ahi o seu tratamento. Ha diversas espécies de barracas, umas fixas e outras susceptíveis de ser transportadas de logar. Estas serão as preferidas, porque se prestam me- -ks>* 237 o-sh- lhor ás necessidades do tratamento, podendo-se abandonar com facilidade o terreno, cujas emana- ções passam a ser em detrimento da cura. As bar- racas fixas, como a que se vê no Hospital da cari- dade cie Berlim, no serviço do professor Langen- berck e até no Hospital Cochin, onde foram cons- truídas em 18G9, por proposta do Dr. Leon Lefort, não offerecem similhante vantagem. 0 tratamento dos doentes nas barracas é inques- tionavelmente um progresso da cirurgia militar. A fácil ventilação das tendas, seu isolamento dos logares em que se acham accumuladas grandes massas de homens, a exposição ao sol e á luz são as melhores condições, a desejar, para o tratamento ■ dos feridos, e especialmente dos infectados, que, na opinião dos melhores práticos de Berlim, são muitas vezes curados pela simples acção do ar encanado. Poucos dias de estada na barraca bastam aos fe- ridos, tocados por algum accidente, para mani- festar grandes melhoras; a temperatura baixa, o apetite renasce, os doentes tornam-se alegres. O ar livre e agitado pela viração é o elemento negativo das fermentações mórbidas. Isto se verificou no Paraguay, onde o trata- mento dos feridos, feito cm suas barracas, passou- se sempre isento de qualquer espécie de accidentes, -*■©• 238 c@h- ao passo que os grandes hospitaes foram desapie- dadamente devorados pelas septicemias cirúrgicas. O tratamento debaixo de barracas é um dos me- lhores auxiliares cia cirurgia conservadora. Em Slewig-Holstein obteve este methodo o me- lhor successo, do mesmo modo que na Hungria, empregado por Krause e na guerra hespanhola por Bell e Hennen. Nos Estados-Unidos offereceu re- sultados dignos de admiração, c durante a guerra entre a Prússia e a Áustria todos os cirurgiões se felicitaram do seu emprego Para tal fim, o melhor systema de barracas é incontestavelmente o americano, que, para ter applicação entre nós, deve experimentar algumas modificações em relação á ventilação. (*) A bar- co Kap tendo systema as barracas de que dispoz o exercito brazileiro, na ultima campanha, para o tratamento de feridas e de certas moléstias iuíc- ctuosas, dei-me ao trabalho de traçar um novo systema do barracas, que cha- marei de saúde. Elias sao das maiores vantagens hygienicas, cm verdadeiro contraste com a sua simplicidade. O plano de tendas que offereço ao Governo c uma combinação do que ha de proveitoso cm todos os systemas conhecidos, ti- rando da barraca americana a sua simplicidade o a facilidade de ser transpor- tada, da ingleza a excellente e franca ventilação, c da prussiana a bendica applicação do rciterduch,qvic não expõe os doentes aos rigores do sol, durante a estação calmosa, e evita a penetração cVagua nas chuvas copiosas. Esta barraca volante teia logar somente para dois feridos. Mais do que este numero nao constitue o desejado isolamento, cujas vantagens silo procu- radas na pratica pelo emprego deste precioso methodo. A estampa que se acha no fim desta dissertação mostra, na Figura II, o exterior da barraca armada. XcUa se distinguem duas coberturas de lona, uma estendida a modo de toldo, na altura de mais de um metro acima do solo, outra que, tendo o mesmo ponto de partida no barrotc transversal, desce rente ao chão, onde se fixa a pequenas hasteas verticaes, que servem de apoio para ambas. Assim, entre uma e outra cobertura existe um longo espaço, que dá accesso ao ar, refrescando nas horas de mais calor o interior da barraca, que torna-se perfeitamente ventilada, graças a quatro portinholas lattracs. Estas aberturas ->-@o 239 *©*- raça ingleza, marquee, preenche melhor este fim; porém c de grandes dimensões, e menos susce- ptível de ser transportada rapidamente. O mesmo se dá com as barracas prussiana e franceza do Dr. Léon Lefort, a primeira cias quaes é muito batida pelos ventos. A' remoção dos infectados eleve seguir-se um tratamento interno apropriado. No tetanos o hydrato de chloral na dose de 10 a 12 grammas, e o sulfato de quinina na de 2 a 3 grammas, só ou alternado com o sulfato de morpliina, são os agentes de mais confiança, e que melhores resultados teem produzido na pra- tica. Muitas outras substancias são recommendadas, taes como, a curara, a fava de calabar, o bromu- reto de potássio, a nicotiana, o ópio e seus alcalói- des, a belladona, a cannabina, etc.; mas sem as vantagens, que correspondera ás vistas theoricas. estabelecem uma verdadeira correnteza na tenda, de modo a trazel-a sempre desinftctada. A Figura I da mesma estampa mostra a disposição do madeiramento, que por sua simplicidade pôde ser facilmente conduzido até onde for o exercito- Compõe-se elle de um esteio central A. mediado ao barrote transversal B, cuja solidez é garantida por dois braços CC, parafuzados em ambas as extremida- des. Este madeiramento, pois, é susceptível de desmanchar-se em poças inteiras, constituindo tudo carga para um animal. lia mais quatro pequenas hasteasD, D,D,D, que devem penetrar bem no solo, tendo dois ganchos, um superior e outro inferior, ambos dirigidos para baixo, afim de supportar as duas coberturas, que silo ahi fixadas por meio de cordas. V porta é igualmente de lona, e pôde tomar todas as posições indispensá- veis para preservar o interior da barraca do sol e da chuva, facilitaudo ao mesmo tempo a entrada do pessoal incumbido do serviço dos feridos. -*©• 240 *&*- A infecção purulenta reclama a desinfecção da ferida. Desde que se manifestam a elevação insó- lita de temperatura, os calefrios e os suores pro- fusos, deve ser mantido o rigor da occlusão, que, ainda depois das operações, poderá ser effectuada por um processo hydrotherapico. O sulfato de quinina será administrado regu- larmente na dose diária de 2 a 3 grammas, era uma poção, que se esgotará nas 24 horas. Pode-se com grande proveito associar a esta substancia o chlorhydrato de ammoniaco, que, na qualidade cie um poderoso diffusivo, auxiliará a sua acção, facilitando as secreções cutâneas, ou a cligitalis, que abrirá vantajosamente a diurese á eliminação dos germens, destruídos pelo sulfato de quinina. A infecção pútrida demanda quasi os mesmos meios, aconselhados para a infecção purulenta, porém ainda mais cuidados em relação á ferida, d'onde se deverá dar sabida fácil ao pus. Para isto serão praticadas largas e profundas incisões no sentido de multiplicar os pontos de contacto ás substancias desmfectantes, e offerecer fácil esgoto aos liquidos corrompidos. As erysipelas exigem também um tratamento geral enérgico, e o sulfato de quinina ainda se mostra soberano para debellar os casos de maior -K3>« 241 KSX- gravidade. A desinfecção local continua a ser recommendada, como uma condição da cura. A podridão do hospital cede quasi sempre ás cauterisações vigorosas por meio do cauterio actual ou pelos cáusticos potenciaes, entre os quaes so- bresáem o chlorureto de zinco e o perchlorureto de ferro. Nos demais estados mórbidos, que podem ser accidentes das feridas por armas de fogo, o trata- mento poucas modificações deve experimentar, principalmente no que diz respeito ao curativo, que convém ser altamente desinfectante. As prepara- ções de quina, principalmente as alcoolisadas, de- verão ser de um uso systematico, até rehabilitar- se o estado da ferida. Alguns destes accidentes, taes como as hemor- rhagias consecutivas, as suppurações interminá- veis e a gangrena, não raras vezes, indicam a am- putação do membro, quando as desordens do orga- nismo são profundas, e os agentes therapeuticos não teem sortido vantagens. Ha occasiões, porem, em que tuclo é baldado ; a economia se acha fundamente subjugada, e os re- cursos da Sciencia são insuffícientes para suffocar a irrupção do vulcão mórbido, em que se extingue a vida. O homem da arte, sempre confiado e creu- te nos progressos da Sciencia, que se inspira na -*©<> 242 «€x- caridade christan, corre pressuroso a recolher os restos mudos do pavoroso incêndio, e, contemplan- do-os, gera-se-lhe n'alma a resignação, e na con- sciência a certeza de ter bem cumprido o seu dever. Liâk. JotírasO-n. Fig-V. PROPOSIÇÕES SOBRE OS DIVERSOS RAMOS DO CURSO MEDICO Physica Pelos conhecimentos physicos se poderá explicar o porque nas feridas por armas de fogo, acompanhadas de fractura e de lacera- mento das partes molles, a hydrotherapia é o meio mais enérgico e salutar? I A acção antiphologistica das applicações frias, em cirurgia é um facto bem averiguado. II A constricção dos capillares e a crispação dos elementos dos tecidos, devidas ao frio, explicam satisfactoriamente esta acção. III Assim, a physica contribue muito á explicação os phenomenos curativos. -*©= 244 ,^. Clxymlcsi minorai Ar atmospherico 1 A' Lavoisier pertencem os primeiros estudos sobre a composição do ar atmospherico. II A analyse do ar é hoje uma das operações mais simples e exactas da Chymica mineral. 11 i 0 facto presentido por Astier, sobre a existên- cia de germens atmosphericos, acaba de ser con- firmado pelas pesquizas de Pasteur. Cliymlca, org-aniea Constituição da glycerina I A glycerina é um álcool triatomico. II De sua combinação com os ácidos em geral re- sulta a prova irrefragavel disto. III A glycerina corresponde ao typo água, trez ve- zes condensado. -ks>* 245 «©•<- Botânica Tecidos vegetaes e órgãos elementares 1 A celhda é o elemento primordial da organisa- ção vegetal. II A fibra e o tubo são simples metamorphoses cellulares. III Os tecidos que resultam da reunião destes ele- mentos são o cellidar, fibroso e vascular. Pharmacia Que confiança podem merecer os extractos pharmaceuticos ? I Extractos são preparados pharmaceuticos que resultam da evaporação de líquidos contendo prin- cípios medicamentosos. II A natureza do vehiculo e o processo de prepara- ção muito influem sobre sua acção therapeutica. III Os extractos são preparados que muitas vezes —*6>o 24G '©*- offerecem vantagens reaes e incontestáveis na pra- tica medica. Medicina leg-al Todo o ferimento pode ser reconhecido por caracteres externos ? I Na generalidade dos casos, bastam os caracteres anatômicos para a determinação dos ferimentos. II Os signacs racionaes não são para desdenhar- se em taes casos. III Ha ferimentos que não se revelam por caracte- res externos, não obstante toda a sua importância e gravidade. Physiologla Absorpção I As lacunas de Bindfleisch constituem uma ver- dade anatômica. II Os vasos lymphatícos communicam-se franca- mente com as lacunas. -+©• 247 *<§*- III O glóbulo branco do sangue representa o mais importante papel nos phenomenos da absorpção. Pathologia geral Cansas especificas I A natureza de um grande numero de causas es- pecificas deixou de ser um mysterio para a Sciencia. II O miasma, o ejfluvio e o viras, na obscuridade de sua historia, cedem o passo ao organismo-fer- mento, reconhecido no campo do microscópio. III O estudo destas causas tende modernamente aos mais importantes progressos. 3£ateria medica e Therapeutica Apreciação da acção physiologica da copaiba e da terebenthina I São análogos os effeitos physiologicos destes dous medicamentos. -x©« 248 •©■!- II Ambos despertam uma irritação local e uma excitação geral. III Na copaiba, a acção electiva sobre a mucosa genito-urinaria é menos accentuada. Pathologia interna Aneurysmas da aorta I Os aneurysmas da aorta são sempre espontâ- neos. II A escutação conduz á certeza no diagnostico desta affecção. III A digitalis e a cravagem do centeio merecem estudos muito sérios no tratamento dos aneurys- mas da aorta. Clinica medica Thermometria clinica I A applicação do thermometro á clinica foi uma feliz inspiração. -ks- 241) o®*_ II O thermometro é de vantagens incontestáveis no diagnostico e prognostico de certas affecções. III Nas moléstias cyclicas o seu emprego é impres- cindível, como guia para o tratamento racional. Hygiene I )a influencia das emanações pútridas i A putrefação não se realisa fora da acção de um fermento organisado. II As emanações pútridas variam segundo a natu- reza das matérias em decomposição. III A sua infíuencia pode ser inteiramente innoxia ou eminentemente lethifera. Anatomia descriptiva Apparelho do tacto I Os órgãos cios sentidos se compõem cie uma par- -*©= 250 *&* te sensitiva e de um mecanismo particular de ada- ptação . II E' de importância muito limitada, no apparelho do tacto, o elemento physico ou de aperfeiçoa- mento . III A polpa digital, em sua totalidade, é a parte mais preciosa do apparelho táctil. Anatomia geral e pathologica Osteogenia e regeneração ou producção do osso I A osteogenia é um facto physio-pathològico complexo. II A regeneração óssea não differe essencialmente da producção. III A ossificação presuppõe invariavelmente a pre- existência ou formação de cellulas embryonarias, e a infiltração calcarea. -y©o 251 »©•<- Pathologia externa Qual a natureza das febres traumáticas após as operações? I As febres traumáticas são verdadeiras e simples septicemias. II Elias correspondem a processos zymogenos nas feridas, e á penetração dos germens na torrente circulatória. III A febre traumática simples dos feridos coin- cide com a formação purulenta. Operações Indicações da punctura evacuadora nas cavidades I A' punctura evacuadora nas cavidades se tem nestes últimos tempos associado a aspiração. II E' indicada a punctura evacuadora, quando não se pode contar com a reabsorpção dos líquidos. III Nos focos purulentos em que se faz temer a ->©° 252 *©-!— complicação do lado de órgãos importantes — c indicada a punctura evacuadora. Clinica externa Tumores adenoides das glândulas mamarias e seu tratamento I Os adenomas são producções mórbidas freqüen- tes na glândula mamaria. II O diagnostico clinico destes tumores é muitas vezes embaraçoso e incerto. III A extirpação é o methodo curativo mais ada- ptado ao caso. Partos Casos em que convém temporisar o delivramento I Sem a retracção do utero não se deve provocar o delivramento. II Nos casos de adherencia da placenta cumpre ao parteiro temporisar. III Nos partos múltiplos deve-se espaçar o deli- vramento até a expulsão do ultimo feto. Bahia — Imprensa Econômica — Rua dos Algibebes, n. 22 r""" .- ■- -.1 rt.-^^yif NLM OOSS^b1» b ■C'3í* IMPIíK.XSA ECONOMIA Paia dos Algibebes. 2" an \.\x BAK IA J. \.__, NLM005549646