VIEIRA SOUTO THERÃPEUTICÃ geral DOS ENVENENAMENTOS DO ANTIDOTISMO E DO ANTAGONISMO EM T0X1C0L0GIA 188’7 THERAPEUTIGA GERAL DOS ENVENENAMENTOS 1)0 ASTIDOTISM E Dl) AMA00MSM0 EM IOXIOOLOCIA PELO DR. LUIZ H0N0RI0 VIEIRA SOUTO SOBRINHO Ex-interno do hospital da Santa Casa de Misericórdia da Côrte, ex-ajudante de preparador, por concurso, da cadeira de Medicina Legal e Toxicologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e membro honorário do Grémio dos Internos dos hospitaes da Côrte. THESE INAUGURAL APPROVADA COM DISTINCÇÃO RIO DE JANEIRO 3NT-A OIOISr_A_3L 1887 AO LEITOR As mais simples circumstancias explicam muitas vezes os maiores commettimentos. Si não fôra a verdade deste principio, certamente que, por muito benevolo, não acharia o juizo critico do leitor excusa para attenuar as faltas e desacertos do autor novel que deli- berou escrever these sobre assumpto de tão subido alcance. Si a posição official de ajudante de preparador da cadeira de Medicina legal e Toxicologia não incluísse a presumpção de que ao menos mais facil era o accesso á officina em que se realizam trabalhos práticos, o dever moral de corresponder á confiança inherente a tal cargo póde explicar a resolução tomada na escolha do assumpto que, por especial e contro- vertido, é ainda hoje dos mais difficeis e afanosos. Cumpre ainda declarar que a inversão das questões pro- postas para a dissertação tem natural justificativa no critério logico que para tal fim é mister adoptar. Em tal emergencia, si a altura e a supremacia do encargo não encontraram interprete idoneo e sufficientemente habili- tado, não se póde negar a boa intenção e o esforçado em- penho com que foi escripto este trabalho que é a ultima demão que a lei impõe ao recipiendario em medicina. CAPITULO I DO ANTIDOTISMO E DO ANTAGONISMO EM TOXICOLOGIA I Si ha assumpto em sciencias medicas sobre o qual de longa data mais se tenha exercido a intelligencia do homem, pare- cendo caminhar na larga e mysteriosa via traçada pelos alchi- mistas, é sem duvida a difficil e interessante questão das substancias ditas antidotas e antagónicas que, merecendo dos antepassados os mais apurados estudos, ainda hoje se resente das difficuldades e naturaes obstáculos que á boa interpreta- ção dos factos morbidos oppõe o organismo humano. Quando na antiguidade acreditava o homem que a seu arbítrio podia transformar a matéria vil e bruta de certos metaes na preciosidade do ouro, o seu espirito forçosamente se devia também accommodar ao fatal erroneo principio anthropocentrico, para então, como natural consequência, andar sempre em busca de tudo o que em torno de si lhe pudesse trazer bons préstimos, lhe fosse de util e facil applicação. Neste presupposto, a natureza inteira, que o circumscrevia como excellente auxiliar da vida, encerrava em seu seio preciosos productos que de certo lhe garantiriam a existência, quando fossem experimentalmente conhecidos. 4 A’ proporção, pois, que as alterações da saude, as differentes manifestações mórbidas iam encontrando em a natureza vegetal ou mineral os agentes capazes de os neutralizar por motivo de sua força intrínseca, se ia constituindo um catalogo de medica- mentos ou antes de agentes que se davam contra esta ou aquella moléstia; dahi a origem do vocábulo antídoto que etymologi- camente apenas significa o que se dá contra. Em virtude da observação desses factos naturaes, cada sub- stancia que se enregistrava como poderoso agente, que, dado contra a moléstia, forçosamente a combatia (antogonizein), foi-se originando a crença de que cada um desses agentes era especifi- camente destinado para a moléstia contra a qual sendo antídoto lhe era também antagónico. E’ esta a origem das substancias especificas, empregadas sempre contra certas e determinadas moléstias, com virtude innata de combatel-as por effeito de sua própria natureza. Desde que os primeiros específicos conhecidos foram tomando voga, também progrediam mais a matéria medica e a therapeutica, que só consistiam no aturado esforço e cansativo empenho de des- cobrir novos medicamentos, de transformar substancias tidas por inúteis em optimos e prestadios elementos de cura. Era o principio da alchimia transplantado para os domínios da therapeutica. Tanto se foi dilatando em pacientes esforços a observação medica, que houve epoca em que rara era a planta a que se não attribuiam as mais preciosas virtudes medicamentosas. Quando artificiosamente trabalhados pelas mãos hábeis dos alchimistas, mais se recommendavam ainda os medicamentos ao favor publico que mais accrescia quando taes drogas eram como que divinisadas pelos sacerdotes esculápios. Neste afanoso mister em que tanto se exerceram os an- tigos, o descobrimento dos venenos, das substancias que 5 davam a morte, foi uma das maiores conquistas dessa epoca e para a qual mais esforçadamente contribuiram as castas sacer- dotaes, que careciam impor a autoridade de suas crenças e fazer vingar seu predomínio magestatico com os sortilégios, falsas prophecias e meios occultos de dar a morte aos incrédulos e hereticos. Applicando-se, a principio, á generalidade dos meios thera- peuticos, tinha exacta significação o termo antídoto, pois que só elle era capaz de expulsar os máos humores, os grandes ve- nenos que o estado morbido mantinha na economia humana. Ao conhecimento das primeiras substancias toxicas seguiu-se a investigação dos meios de as combater. A essa data se deve re- ferir a restricção em que cahiu o termo antídoto que começou então a ser considerado como especifico para combater os ve- nenos. Substituído mais tarde pela denominação vulgar contra- veneno, o vocábulo antídoto não deixou de ser particularmente empregado pelos médicos e chimicos para qualificar o remedio empregado contra o veneno. Depois que a sciencia chimica foi dilatando os seus domínios e estendeu-se ao conhecimento das combinações organicas, a experimentação physiologica começou a ser ensaiada no intuito de tornar bem conhecidos os effeitos desastrosos que, no organismo animal e humano, podem determinar as substancias toxicas. Taes conhecimentos, ainda que só adquiridos muito posterior- mente á epoca em que já de modo empírico se apregoava o valor e efficacia de certos antídotos, tiveram o grande mérito, a vanta- gem real de nos premunir contra os preceitos do empirismo barbaro de épocas antigas, e ao mesmo tempo aclarar-nos sobre o modo de ser de alguns delles, sobre a razão determinante de sua efficacia provada. 6 Assim é que alguns antídotos, operando simples acção me- cânica, por impedir a absorpção da substancia toxica, se consti- tuíam o primeiro e mais seguro meio de cura, quando applicados opportunamente, quando administrados logo após a ingestão da substancia venenosa. *• As mucilagens, os xaropes, as matérias albuminosas, são substancias que, por sua natureza physica, facilmente incorporam a matéria toxica, a immiscuem em seu trama viscoso, e só a custo lhe permittem o contacto com a superfície absorvente. As sub- stancias administradas sob a fórma de pós tenues, como o carvão vegetal e animal, as cinzas, as farinhas, e outras, como o per- oxydo de ferro, a magnesia, actuando mecanicamente por effeito physico absorvente, podem ainda exercer acção chimica sobre certos agentes toxicos. Todas estas substancias, geralmente empregadas para de- bellar envenenamentos, dão por vezes excedentes resultados, produzem realmente o effeito desejado, e são portanto contra- venenos e antídotos no rigor etymologico da palavra. Não merecem porém ser adjectivadas com o esforçado qualificativo de antagonistas, porque não combatem ellas cousa alguma, não constituem força opposta e contraria á que se acha em acção no envenenamento, e antes simplesmente evitam a luta, porque nem permittem que se preludie o quadro desolador dos sympto- mas indicativos da absorpção do veneno. Si porém, por maior extensão que se quer dar ao termo antídoto, póde elleser appli- cado ás substancias que neutralizam, por sua presença e acção chimica, as propriedades deleterias do veneno, então muito outra deve ser a concepção real e legitima do seu modo de obrar. Neste intuito e para não destoar das praticas scientificas, declaramos em tempo que por simples contra-venenos só con- sideramos as substancias que, se incorporando á matéria toxica, representam um agente mecânico de alto proveito porque im- 7 pedem a diluição e a absorpção do veneno; como antídotos só julgamos os neutralizantes de acção chimica, contra-venenos por excellencia, porque de facto têm taes substancias a grande vantagem de modificar profundamente a natureza da matéria toxica transformando-a em corpo novo completamente inocuo, ou de fraquíssima acção de contacto ; finalmente reservamos o nome de antagonistas exclusivamente para aquellas substancias que exercem acção dynamica ou effeito physiologico completamente opposto e contrario ao queé determinado pela substancia toxica. Seriam estes últimos os mais seguros meios de combater os envenenamentos si effectiva e realmente os seus effeitos fossem bem conhecidos, e a opposição de forças que as apparencias expe- rimentaes apregoam tivesse a realidade annunciada pelas con- jecturas theoricas. Ainda que, na heterogenea complexidade dos elementos con- stitutivos da matéria organisada do corpo humano, affirme a sciencia que a matéria plasmatica, o simples protoplasma cellular seja osubstractum unico a que se reduz toda a carpen- taria organica do ser vivo, homem, cumpre ter sempre em vista que tal substancia é, por sua natureza, essencialmente instável, e como tal sujeita a mil modificações differentes, que nos são completamente desconhecidas. Por esta ponderosa circumstancia nos é absolutamente impos- sível aventurar a minima conjectura sobre as combinações chimicas que a substancia toxica poderá effectuar no trama orgânico com o plasma constitutivo dos tecidos. As variabi- lissimas acções a que ficam subordinados os elementos orgâ- nicos não podem também ser previstas, porque os symptomas geraes de qualquer envenenamento, traduzindo alteração pro- funda de tecidos e orgãos, não nos habilitam a instituir medicação uniforme contra esta ou aquella modalidade pathologica que na occasião nos parece ser o facto predominante. 8 Todas estas considerações, que em synthese aqui são apre- sentadas, significam o tronsumpto de não pequeno numero de ensaios e investigações experimentaes a que se tem procedido com o louvável intuito de verificar a realidade do antagonismo que entre si parecem apresentar certas substancias em relação a outras. Assim por exemplo o álcool vinico, produzindo notável dimi- nuição nas manifestações convulsivas do envenenamento pela strychnina, pareceu, a principio,substancia antagónica do poderoso alcaloide das strychnos. As celebres observações do Dr. Morey, referidas no jornal medico de Chicago, sobre a pretendida immu- nidade para o envenenamento pela strychnina que apresentam os individuos ébrios, não foram confirmadas pelas pacientes in- vestigações do Dr. Stachini de Florença, que sobre tal assumpto instituiu uma serie curiosa de experimentações que podem ser citadas como modelos de technica e boa interpretação physio- logica. Os resultados das observações de Rossbach e Frõlich sobre a atropina e a eserina contrahindo e dilatando a pupilla, foram se- ria mente contestados por Harnack. Si a acção paralysante da atropina parece annullar o effeito excitante da physostigmina, o agente excitante não póde por sua vez neutralizar a acção paralysante de seu supposto antagonista. Além disto, si particularmente sobre a iris este phenomeno curioso póde ser observado em coelhos, nada se póde concluir em relação aos effeitos que sobre outros tecidos, orgãos e func- ções podem as mesmas substancias produzir. Desde que Liebreieh afftrmou as propriedades hypnoticas do chloral, começou de ser ensaiada a acção antagónica desta substancia sobre a strychnina. Resulta das famosas experiencias de Vulpian, que, si nos cães a que se administram dóses mortaes de strychnina as injec- 9 ções intravenosas de chloral impedem o apparecimento de ata- ques convulsivos, não deixam elles entretanto de succumbir, ainda que em tempo mais demorado. A morte neste caso é sim- plesmente retardada. Os numerosos factos de observações em que o chloral ou o chloroformio têm podido annullar os effeitos de dóses toxicas de strychnina, foram escrupulosamente reunidos por Husemann que, procurando conhecer do antagonismo de taes substancias, nada entretanto conclue de positivo sobre esses factos observa- dos e experiencias realizadas. A atropina, excitando o centro respiratório, parece constituir um verdadeiro antagonista do chloral que determina a paralysia do mesmo centro. Entretanto as experiencias de Husemann, por mais cautelosamente que tivessem sido feitas, apenas tendem a demonstrar o antagonismo real que as duas substancias apre- sentam em relação ao centro respiratório, sendo que nos diffe- rentes animaes sujeitos a experiencias muito diversos foram os effeitos observados, salvando-se uns e succumbindo muitos outros. O interessante facto, referido por Husemann, do doente into- xicado por 20 grammas de chloral, que se salvou com a injecção hypodermica del/2 milligramma de atropina, é talvez unico na sciencia. Si o curare, por sua acção diurética, póde favorecer a elimina- ção da strychnina, torna-se um. bom meio a empregar e que indi- rectamente contribue para a cura, não póde comtudo ser julgado nem mesmo antagonista indirecto. O curare e a strychnina dissimulam os seus respectivos effei- tos enão são antagonistas, porque, si um actua sobre as placas terminaes dos nervos motores trazendo a paralysia, a outra de- termina forte effeito de excitação nos centros motores; não têm portanto acções que se contrariem no mesmo elemento e tecido. 10 Os estudos experimentaes, varias vezes realizados sobre o antagonismo entre a muscarina e a atropina, aliás sendo dos mais bem feitos, não nos conduzem também a boa conclusão scientifica sobre a realidade de seu valor como antagonistas. As hypersecreções glandulares determinadas pelo principio activo do Agctricus muscarius, que são consideravelmente modi- ficadas com a intervenção da atropina, foram o phenomeno que, vivamente interessando os observadores, os conduziu a experi- mentar até que ponto podem chegar as suas propriedades-anta- gonistas. Schmiedeberg e Koppe, depois de haverem demonstrado a parada do coração em diástole com a administração da muscarina, provaram mais que todos os effeitos toxicos produ- zidos por esta substancia são promptamente annullados, quando se injecta no sangue pequeníssimas dóses de atropina. Ainda mais, a administração de 1/2 milligramma de atro- pina a um animal impede absolutamente o apparecimento dos phenomenos de intoxicação proprios da muscarina. Sobre as secreções glandulares é tão prompta e manifesta a acção antagónica destas substancias, que, adaptando uma canula aos canaes de Warthon para receber a saliva que se escôa abundantemente após a administração da muscarina, a minima dóse de atropina que se venha a administrar nestas condições faz suspender immediatamente o corrimento da saliva, como si fechasse as torneiras de que fossem providos taes canaes, O antagonismo, pois, destas duas substancias é um facto provado experimentalmente. Desta serie de experiencias, todavia, nada é permittido concluir em relação ao homem, porque é sabido que os cães, gatos e coelhos resistem a dóses relativamente elevadas de atropina e o homem é muito sensivel a esta substancia, não se lhe podendo applicar por esse motivo, em gráo equivalente, dóses que se presumem ser, em quantidade, antagonistas. Ainda que as experiencias physiologicas tendam a de- monstrar que as excitações, o delirio e as allucinações produ- zidas pela atropina sejam facilmente combatidas pela muscarina, pela physostigmina e pilocarpina, entretanto é ainda á mor- phina que em taes casos se recorre. Não se têm apresentado factos clínicos de envenenamento pela muscarina, que tenham podido ser debellados pela atro- pina, para se julgar de seu valor antagónico no homem. li Como complemento ás considerações expendidas no para- grapho antecedente, não serão neste logar descabidas mais algumas reflexões sobre o antagonismo clinico, assumpto pre- dilecto para os sectários da doutrina do similia similibus curantur e que desde tempos remotos trabalhou com ardor o espirito dos mais conscienciosos observadores. A crença no antagonismo das acções mórbidas—que se firmou desde Thucydides com o seu aphorismo « duobus doloribus simul obortis vehementior obscurat alterum »—, afagada pelos escriptores do século passado, chegou ao apogêo das convicções com o exagero que a tal doutrina deu Hahnemann erigindo-a como fundamento exclusivo de seu systema clinico e therapeutico. Si para Bordeu « ha temperamentos que fecundam germens de moléstias, e outros que resistem á acção dos miasmas e até se familiarisam com os venenos», Hunter mais positivamente affirma o principio da incompatibilidade de certos estados mór- bidos, quando « não admitte a existência de duas febres differentes no mesmo organismo, de duas moléstias locaes na mesma região do corpo ». 12 Estabelecido e firmado o principio da unidade das acções vitaes, cada uma das quaes por igual contribue para o fim com- mum, isto é, a manutenção da vida, não muito desarrazoado seria acreditar-se que, como unidade viva, jamais o organismo poderia em si incluir effeitos de acções dynamicas semelhantes, sem que desde logo o antagonismo vital operasse fortes reacções para se desembaraçar do agente que o desequilibrava, sendo que em taes casos sempre o fraco cederia o passo ao forte. Tal correlação de forças organicas, ainda que seja uma ver- dade anatomo-physiologicamente bem consagrada, não re- presenta comtudo uma somma de forças que—exprimindo a re- sultante de varias componentes—possa significar o principio vital, a aura vitce dos espiritualistas, entidade abstracta, noção ideal a que dão corpo as intelligencias allucinadas pelos preconceitos religiosos. E’ no presupposto da distincção absoluta de alma e corpo, de espirito e matéria, que se originou uma entidade abstracta reguladora das forças organicas e que, com império tyrannico sobre as molas do trama corporeo, lhe vêm sempre em auxilio, quando algures força estranha e insólita procura minar-lhe as bases, alluir os alicerces da carpentaria heterogenea, que são o seu feudo. Si como tal não podem de boje ser tomadas em consideração essas abstracções engendradas pela mentalidade metaphysica dos médicos vitalistas, não muito distante de nós, e ainda com certo império e cunho de autoridade, se ergue sobranceira a escola po- sitivista, que, em matéria biologica, sustenta, como principio inconcusso, a indiscutivel correlação das forças organicas, a in- tima subordinação de orgãos e funcções na economia animal. Com tal anastomose entre si se ligam estatica corporea e dynamica funceional no homem e animaes, que para os sectários desta doutrina, a physiologia experimental, a apparição de phe- 13 nomenos que se provocam artificialmente são a negação completa dos mais elementares requisitos da lógica que não permitte con- clusão alguma, porque do todo orgânico se não pode desmem- brar partes, sem que desde logo soffra e se desequilibre a unidade complexo. Este conjuncto de idéas effectivamente traduz a verdade das correlações organicas na economia humana, e exprime com feli- cidade a unidade vital, a homogeneidade do todo, resultante da combinação heterogenea das partes, mas em absoluto não nos pôde servir de norma e seguro guia para orientar-nos relativa- mente aos desvios da normalidade organica na manifestação dos estados morbidos. Vários exemplos podem ser adduzidos para demonstrar que o facto do antagonismo clinico, isto é, a incompatibilidade da coexistência de duas moléstias no mesmo organismo, passou como verdade assegurada pela observação e explicada sempre pela idéa systematica das doutrinas reinantes em medicina. Ghomel, affirmando que ha condições organicas que predispõem ao contrahimento de certas moléstias, e outras que são natural- mente preservadoras, não sustenta, mas allude ao principio do antagonismo. Boudin, que encontra na constituição climatica das zonas pa- lustres a origem das febres intermittentes, assignala a singu- laríssima resistência que ao impaludismo apresentam os indí- genas dessas localidades, e com o principio do antagonismo procura explicar semelhante immunidade, appellando para a força innata e refractaria que taes indivíduos offerecem ao miasma palustre. A immunidade bem aecentuada dos indivíduos de raça negra para o impaludismo não pode ser levada á conta do antago- nismo para essas moléstias; porque com tal doutrina apenas se recua a difficuldade da explicação, e vem acobertar-se com a 14 emphase do termo, a ignorância de um facto que o habito, a adaptação e a accommo dação ao meio também não esclarecem s ufficientemente. Esta facto ê de conhecimento tão vulgar, que sobre elle se firmam os rigorosos conselhos de acclimaçâo, lembrados como o mais efficaz antídoto para os males e enfermidades que affligem os recem-chegados a climas differentes daquelles em que nasceram. Nas zonas frequentemente* assoladas pela febre amarella é notoria a immunidade que adquirem os indivíduos ahi nas- cidos, contra a facil e prompta receptividade que apresentam os indivíduos originários de climas frios ou das altitudes, em que o typho icteroide só excepcionalmente tem sido obser- vadov As condições individuaes de uns e de outros preservam ou favorecem a explosão da enfermidade. Não ê, porém, seguro processo logico firmar a idéa da resis- tência particular no facto de uma força antagónica que crôa a immunidade, elevando á categoria de lei scientifica o que é pura conjectura, mera hypothese doutrinaria. A idéa annunciada por Boudin, relativamente ao antagonismo da tysica e febres palustres, ainda que com sectários como Oli- vier d’Angers, é hoje apenas uma curiosidade histórica, que em breve se sepultará no mundo archeologico das extravagancias doutrinarias. As estatísticas cautelosamente feitas por Twining, Gordon, Well e Morhead provam á saciedade que, nas regiões palustres das índias e Bengala especialmente, a tysica é moléstia frequente e de marcha tão rapida quanto quasi sempre funesta. Na Guyana,. diz Laure, as febres palustres, que são en- démicas e parecem formar o estado normal da constituição medica, não são mais frequentes do que a tysica. 15 No dizer de Neftel, ha regiões do Gaucaso em que as moléstias tuberculosas são tão communs como as febres pa- ludosas, e outras em que o impaludismo é quasi desconhecido,, com predominância natural das doenças escrophulosas e tu- berculosas. Estudando o clima do Egypto, assegura Schnepp que nelle se encontram as condições favoráveis para o impaludismo e a tysica e que ambas as moléstias podem coexistir ou se ma- nifestar isoladamente. Com o critério destas opiniões, a idéa do antagonismo entre taes enfermidades não póde mais subsistir, além de que tbeoricamente as investigações modernas tendem antes a appro- ximal-as sob o ponto de vista etiologico do que a afastai-as, e mais também annunciam que a evolução da tysica tuber- culosa parece ser mais facil nos organismos enfraquecidos em hypoglobulia sanguinea pelo miasma palustre. A esta summa de idéas, que estabelecem certa impossibilidade na co-existencia de algumas moléstias e até mesmo de epidemias, se filia directamente o magno e momentoso problema das immunidades creadas pelas vaccinações preventivas. Por ser assumpto de actualidade, que se discute com ardor e enthusiasmo, têm aqui facil entrada algumas considerações que apenas servirão para esboçar, a largos traços,, o critério que póde merecer a idéa do antagonismo applicado a taes medidas prophylacticas. Quando, por exemplo, se affirma a verdade de que o ba- cillus anthracis é o agente vivo productor do carbúnculo dos animaes e pustula maligna no homem, e mais que a cultura attenuada de taes agentes microbioticos preserva os animaes da devastação de tão terrível hospede, simplesmente annun- cia-se um facto experimental bem comprovado no sentido xla imm unidade que confere aos animaes vaccinados. 16 Sobre estes factos, que a experimentação demonstra e as obser- vações confirmam, não se póde, ao menos por agora, levantar theorias que signifiquem, em boa lógica, conclusão exacta de boas e fieis premissas. O pequeno germen vivo, saturando o organismo humano ou animal para conferir a immunidade, assim á guiza de um liquido que não mais dissolve depois que está saturado, é hypothese que não póde surgir, porque jamais se viu no sangue dos animaes inoculados o minimo vestigio dos insignificantes para- sitas que tão gravemente perturbam a hematose. Appellar-se ainda para um effeito dynamico particular, quetaes inoculações imprimem aos elementos morphicos do sangue e outros fluidos, de modo a collocal-os em condição permanente de preservação, é estabelecer-se, com o vago das palavras, um ver- dadeiro castello de concepções theoricas que só póde filiar o espirito do observador ás finuras e argúcias metaphysicas dos senhores homoeopathas. Com o desenvolvimento que ultimamente tem tido a grande theoria dos germens vivos, muito se têm lisongeado os homoeo- pathas, por verem elevada á categoria dos mais sãos princípios de boa investigação clinica a doutrinados infinitamente pequenos que, si podem produzir grandes males, também em dadas con- dições podem ser portadores dos maiores benefícios. Assim é que as grandes dynamisações têm para elles virtudes sobejas para operar verdadeiros milagres clínicos. Ora, si por acções physico-chimicas desconhecidas os micró- bios em cultura attenuada preservam de moléstias graves, também as grandes diluições do agente medicamentoso têm analogamente a precisa força para antagonisar a moléstia que se combate. Todas estas affirmações, porém, não passam de hypotheses gratuitas que mais nos fazem recuar ás épocas tenebrosas das ideaiisações metaphysicas do que permittirem esclarecer sobre a razão de ser de taes factos que, por dilatados annos, ainda serão ignorados. Em conclusão, e para remate de tanto discorrer, póde-se affirmar que a idéa do antagonismo clinico, therapeutico e toxico é uma inverdade que se não estriba em argumento logico de valor. Com estas bases, no capitulo seguinte apenas serão referidos os factos geraes que mais directamente podem entender com a therapeutica geral dos envenenamentos, sem que a lista dos agentes estudados inclua uma substancia verdadeiramente anta- gónica . CAPITULO II THERAPEUTICA GERAL DOS ENVENENAMENTOS A therapeutica dos envenenamentos é uma parte limitada da therapeutica geral cujo estudo e importância se impõem ao clinico, em vista da urgência e precisão com que deve elle prestar cuidados médicos nos casos singulares e especialís- simos de taes manifestações mórbidas. Desde que se trata de doentes intoxicados carecendo de prompto e immediato soccorro, que deve ser positivamente definido, nunca poderá ser anteparo da ignorância medica o emprego de qualquer palliativo que venha abrir espaço á meditação e estudo, como é facto ordinário nas simples prescripções clinicas. Quando a vida do envenenado corre perigo, a classica mistura salina simples não deve ser recommendada como exordio de espectação em que por horas descance o clinico, até que se lhe aclarem os horizontes, ou possa esperar que o estudo de gabinete ou a consulta a terceiro o venha orientar sobre o rumo therapeutico que deve seguir. Si a hesitação no momento preciso de intervir prejudica o doente, a interferencia fóra de proposito ou mal dirigida ainda mais de prompto o comprometterá. 19 A administração de um oleo, que é meio geral aconse- lhado para incorporar o veneno e provocar vomitos, é do peior effeito e directamente contra-indicado no envenenamento pelo phosphoro, pois que, com virtude dissolvente sobre este metalloide, mais facilmente o apresta para prompta e immediata absorpção. A apomorphina, vomitivo energico que é capaz de desem- baraçar o estomago das ultimas particulas toxicas que encerre, applicada tardiamente no envenenamento pela strychnina, quando já tem apparecido o trismus, só aggravará a situação do in- toxicado augmentando a affiicção ao afflicto, pois que, não podendo vomitar por ter os queixos cerrados, vê-se forçado a penosos esforços de vomiturição, a que o obriga o intempestivo conselho medico. O quadro symptomatologico dos envenenamentos, ainda que offereça muitos pontos de contacto com o de qualquer outro estado morbido, se assignala entretanto por certo numero de caracteres que, dando-lhes cunho especial e feição própria, os fazem discriminar dos casos clinicos geraes, para accentuada- mente regular a intervenção do medico. Si algumas vezes é possivel a confusão entre moléstia simples e envenenamento, e o diagnostico differencial difficil ou quasi impossivel, como no celebrado facto, por vários autores referido, de graves perturbações de saude que soffreu o filho de Fran- cisco II após a ingestão de um copo de agua fria, na grande maioria dos casos o envenenamento claramente se define e evi- dencia aos olhos do menos cuidoso observador, em assumpto detoxicologia. O apparecimento brusco e insolito de phenomenos geraes graves como a alteração profunda dos traços physionomicos, a anciedade e angustia que preludiam os vomitos, a lividez dos 20 lábios, das orlas palpebraes e de toda a face que se cobre ás vezes de suores frios e viscosos, são symptomas atterradores que exprimem serias perturbações das grandes funcções vitaes, peculiares á grande maioria dos envenenamentos. As perturbações visuaes e auditivas, a hyperhemia das con- junctivas e globo ocular, a dilatação e contracção intermittentes ou constantes da pupilla que nem sempre reage normal mente á luz, são outros signaes clínicos, que juntos aos primeiros mais esclarecem o diagnostico do envenenamento. Os symptomas especiaes subordinados á acção de contacto da matéria toxica, quando bem referidos pelo paciente, dão os últimos traços caracteristicos deste estado morbido. Assim, a sensação acida, styptica, acre e ardente que sobre os lábios, lingua, bocca posterior, pharynge, esophago e estomago deixam certas sub- stancias em seu trajecto, além de sobejamente caracteristicas, nos esclarecem muita vez sobre a natureza do proprio agente to- xico. A sensação de calor que póde ir até o gráo o mais intenso, de modo a simular uma verdadeira combustão do estomago e in- testinos, as cólicas gastro-intestinaes que se irradiam, a pneuma- tose intestinal, ou retracção do ventre, com dejecções liquidas frequentes e violentas, ou notável constipação, as nauseas, vomitos, ou simples regurgitações, acompanhadas .ou não de soluços, são uma outra serie de signaes clínicos, que, por sua concomitância e apparecimento brusco, particularizam os en- venenamentos. As matérias rejeitadas pelos vomitos ou expellidas em de- jecções alvinas, por sua côr, aspecto, e natureza fortemente acida ou alcalina, vêm algumas vezes, como ultima demão, esclarecer completamente o diagnostico. Finalmente os phenomenos geraes que exprimem embaraço ou alteração profunda nas funcções de respiração e circulação, como a orthopnéa e cyanose, não deixam mais duvida alguma ao espirito do mais exigente clinico em matéria de diagnostico differencial. Todos estes symptomas que se podem manifestar regular- mente em série ascendente de gravidade, apparecer promis- cuamente, quasi de súbito, com intermittencias e exacerbações, sendo peculiares aos envenenamentos, formam um conjuncto de signaes clínicos, que raras vezes faltam, mas que se apre- sentando ás vezes de modo anomalo e extravagante, tornam dubitativo e difficil o diagnostico. Em taes casos, só a sagacidade e a perspicácia clinica, em saber apanhar no meio de taes symptomas o fio conjectural, é que permitte fixar juizo definitivo sobre o problema a re- solver. De taes singularidades pathologicas não se pôde curar quando se faz em synthese o estudo do complexo symptomatologico, á vista dos mais communs factos de observação. No que respeita á marcha do envenenamento, á evolução dos seus phenomenos caracteristicos, ainda se póde dizer que taes estados morbidos são de si mesmos modalidades clinicas geral- mente bem accentuadas. Assim, excepção feita dos envenenamentos chronicos, lentos ou profissionaes, cujo estudo não é aqui proprio de nosso mister, a sua marcha é em geral aguda ou sub-aguda, isto é, se de- nunciam os symptomas immediatamente após a ingestão da matéria toxica, ou com pequeno intervailo de tempo, e sempre com acceleração notável dos signaes caracteristicos. Os envenenamentos ditos fulminantes são uma exageração clinica, que só excepcionalmente póde ser assignaiada. Neste curso de idéas que traduzem a noção do complexo dos envenenamentos, a sua therapeutica geral, isto é, o conhe- cimento dos meios que podem ser empregados para os debellar, 22 ainda que deva ficar subordinado muitas vezes á natureza do agente toxico, é assumpto sobre que se póde estabelecer regras e preceitos geraes, sempre uteis e aproveitáveis. Desde que se trata de um problema indeterminado em que figura como incógnita a substancia venenosa, a lista dos me- dicamentos a prescrever, o catalogo dos conselhos a formular, também geral e indeterminado, não póde ser sempre definitiva- mente bem arrolado. Dous grupos geraes de meios therapeuticos podem ser acon- selhados : uns têm por fim premunir o organismo contra a absorpção ; são meios preventivos e constituem a therapeutica prophylactica : outros se destinam a combater os symptomas indicativos da absorpção dos venenos ; são os meios propria- mente curativos e constituem a therapeutica curativa. Prophylactica ou curativa, a therapeutica geral dos envenena- mentos tem um fundo commum, que consiste no emprego bem a proposito dos medicamentos a prescrever, dos conselhos a formular. Si o a proposito é em clinica geral o grande segredo que caracterisa o bom pratico, em toxicologia é a condição impre- scindivel para a salvação da vida que corre imminente perigo. Quando se tem a felicidade de poder intervir logo após a in- gestão das primeiras dóses da substancia toxica, quando todas as probabilidades dão a presumpção de que ainda não foi absor. vido o veneno, resume-se e concentra-se o dever do clinico nos esforços para desembaraçar o estomago do veneno propinado. E’ assim que vários meios mecânicos podem dar optimos resultados ; a titillação da uvula e do pharynge com o dedo, com as barbas de uma penna, com um pincel de fios, são os mais promptos meios que de momento podem ser empregados. A ingestão de agua morna simples ou com sabão, de agua albuminosa, de cinzas, de matérias feculentas, repugnantes, 23 de carvão em pó fino, são outras substancias que, podendo pro- vocar os vomitos, fazem rejeitar a matéria venenosa. Os vomitivos medicinaes ordinariamente empregados em thera- peutica, como a ipecacuanha, o tartaro emetico, só muito discretamente podem ser prescriptos. O pó da raiz brazileira, por não ser tão forte hyposthenisante como o tartaro emetico, é na pratica mais vezes utilisado ; mas ainda a sua administração seria contraproducente si o veneno f osse a emetina» Portanto só póde ter entrada a ipecacuanha na lista dos meios geraes, quando ao menos se puder assegurar que o veneno não é o principio activo do medicamento aconselhado. A apomorphina, administrada por via hypodermica, tem a grande vantagem de produzir prompto e energico effeito vomitivo, além de poder ser empregada apezar da vontade do doente que, nos casos de suicidio, resiste tenazmente aos meios de salvação que se lhe traz. Esta substancia com o ser de manejo perigoso, pois que em certas dóses é também venenosa, dosada com critério não póde deixar de ser aconselhada; na dóse de alguns ' milligrammas a apomorphina produz quasi sempre os effeitos desejados, de modo a não ser preciso elevar até quasi dous centigrammas a dóse empregada como aconselha Max-Quehl. E’ para lembrar-se esta restricção na dóse, em vista do facto recente de Pecholier, que apresentou phenomenos graves de envenenamento pela apomorphina após uma injecção hypoder- mica de 11 milligrammas desta substancia. O chlorhydrato deste alcaloide é o sal mais frequentemente aconselhado em injecções hypodermicas, que, além de bom effeito vomitivo, não produz de ordinário accidente algum local que possa abalar a susceptibilidade mórbida do indivíduo enve- nenado. 24 0 tartaro emetico, ainda que seja um dos mais poderosos vomitivos conhecidos, é comtudo meio pouco seguro, infiel e al- gumas vezes perigoso; só póde ser aconselhado, portanto, com a maior cautela, sendo seus effeitos cuidadosamente vigiados. Si em pequenas dóses póde estabelecer a tolerância do estomago, algumas vezes, mesmo em dóses de 1 a 2 decigrammas, apenas determina nauseas e regorgitações a que se não segue o vomito; em certas condições emfim só promove a evacuação intestinal que não é na occasião o effeito que se deseja. Em todos os casos determina sempre mais ou menos effeito hyposthenisante, o que é das mais serias e arriscadas consequências, porque aggrava a situação do paciente que, perdendo em forças, difficilmente poderá reagir contra o enfraquecimento e prostração a que na- turalmente está condem nado. Cumpre ainda lembrar que o emprego do tartaro emetico como vomitivo não é propriamente recurso therapeutico para um caso indeterminado. O seu emprego já faz presuppòr que se não trata de envenenamento pelos antimoniaes, porque seria esse o caso em que, [para se conjurar os effeitos de uma substancia toxica, se administrasse a mesma substancia, ou uma sua conge- nere em effeitos physiologicos e toxicos. Os sulfatos de zinco e cobre são dous outros vomitivos medi- cinaes a que póde recorrer o medico para fazer evacuar o ventriculo gástrico, e que, por não promoverem a hyposthenia do tartaro emetico, são por alguns práticos preferidos. Não são entretanto vomitivos que inspirem confiança porque, além de variavel a dóse em que seus effeitos se pronunciam, são elles por vezes acom- panhados de fortes gastralgias e mesmo caimbra de estomago, que accrescem a analogos phenomenos, por ventura provocados pela substancia toxica que se quer eliminar do estomago. A estas razões accresce ainda a circumstancia de que os effeitos vomitivos destas substancias não parecem devidos á 25 acção local que ellas exercem sobre a mucosa gastrica, mos antes á acção geral de que coparticipam com os demais venenos mus- culares. Em conclusão, afóra os meios mecânicos que podem provocar vomitos, e a administração das substancias oleosas e repugnantes que podem ter igual effeito, de todos os vomitivos aconselhados o menos perigosoé a ipecacuanha em pó. Todos os mais que aqui ficam assignalados exigem a maior discrição e reserva em seu emprego, e só podem ser utilisados com as inspirações que, á cabeceira do doente, fornecer a urgência e o perigo da situação. O uso da bomba gastrica é recurso aconselhado por muitos práticos e effectivamente dos mais valiosos, si as manobras a que obriga não pudessem ás vezes contraindicar o seu emprego. A forte aspiração promovida pela bomba que se adapta á can- nula introduzida no esophago até o cardia, determina ás vezes con- tracções espasmódicas da mucosa gastrica, sua erosão e até mesmo dilacerações parciaes, que mais podem aggravar a integri- dade do orgão já tão directamente solicitado pela substancia toxica. O tubo de Faucher é um apparelho muito simples, que não tem os inconvenientes da bomba gastrica e que poderá operar a com- pleta lavagem do estomago até a sua evacuação total. Consiste em um tubo de borracha, de 1 1/2 metro de comprimento sobre 10 a 12 millimetros de largura, com paredes fortemente espessas, de modo a poder ser curvado sem diminuir a capacidade. Introduzido até o estomago, eleva-se a extremidade livre acima da altura da cabeça e nella se derrama, por meio de um funil, aguá fria ou morna até ficar completamente cheio, retira-se então o funil e volta-se rapidamente a extremidade livre até o nivel da região umbilical: forma-se assim um tubo em siphão de ramos des- iguaes; a agua começa a correr acarretando as substancias diluidas ou dissolvidas que encontrar no estomago. Póde-se re- 26 petir esta operação varias vezes, até a completa eliminação da ultima partícula toxica que contenha o estomago; não se deve mesmo dar por ultimado a lavagem sinão quando a agua correr quasi limpida. Os pequenos inconvenientes, que se ligam ás manobras na applicação deste instrumento, são facilmente obviados pela pe- rícia do operador. A modificação que Debove imprimiu ao tubo de Faucher,e que consiste no emprego de um mandarim que se introduz simulta- neamente com o tubo, tem por fim franquear mais facilmente o orifício superior do eaophago, quando é sêde de contracções espasmódicas que embaraçam a passagem da sonda. Realizada o penetração do tubo de Faucher, retira-se o man- darim e a entrada da agua começa a fazer-se sem difficuldade. E’ sem duvida este o meio mais seguro e efficaz para se pre- munir o medico contra os effeitosda absorpção do veneno, porque sem grandes inconvenientes, sinão pequenos incommodos de occasião, póde garantir a evacuação completa da substancia toxica que é diluida pela agua que seíaz penetrar. Finalmente é este o meio a que póde o pratico recorrer com plena e inteira confiança e que, mais do que qualquer outro, já conta grande numero de successos que auspiciam bom futuro na generalisação de seu emprego. Preenchida a mais urgente indicação qual a de evacuar imme- diatamente o estomago da matéria toxica, cumpre ainda attender a que alguma parte da substancia venenosa póde ter franqueado ' o orifício pylorico e cahido na grande via absorvente da super- fície intestinal. Nestas circumstancias são mais para receiar os effeitos da ab- sorpção, visto como é na extensa superfície mucosa dos intes- tinos que mais própria e facilmente se exercita esta funcção; por este motivo, e porque até ahi não chega a acção preventiva dos 27 meios já referidos, é preciso recorrer a outros agentes que lá vão ter com virtude ainda prophylactica. Taes meios são os purgativos; são elles de varias especies e procedências. O seu emprego, porém, não póde ser indifferente, devendo a escolha depender das múltiplas condições especiaes do paciente, em que na occasião o pratico se possa inspirar. Em todo o caso, é seguro preceito não aconselhar-se purgativo que tenha grande acção irritativa sobre as mucosas, nem qual- quer outro cujo effeito seja demorado. A questão da dóse é em taes condições circumstancia poderosa a que muito de perto se deve attender. Com a referencia dos ma is conhecidos, sua posologia e indi- cações ficam reservadas para as monographias e outros trabalhos especiaes, pois que aqui não têm ellas cabida. A magnésio calcinada, os sulfatos de magnésio e de sodio, os oleos, de ricino, de andá-assú, o proprio oleo de croton tiglium, a glycerina e outros podem ser utilisados com vantagem. O effeito dos purgativos pôde ainda ser auxiliado com o es- timulo e a excitação que, sobre a mucosa do intestino recto, determina o emprego de clysteres de agua fria, de agua morna, de oleos simples, ou mesmo das substancias purgativas que foram administradas pela bocca. Satisfeitos, com as indicações até aqui referidas, os primeiros reclamos do organismo que está sob a influencia do agente toxico, cumpre também lembrar que póde ser do mais mo- mentoso proveito o emprego de algumas bebidas diluentes, refrigerantes e emollientes, pois que, moderados os effeitos de irritação local deixados pela matéria toxica, attenuam as acções irritativas dos medicamentos e algumas vezes até representam o papel de verdadeiros contra-venenos. Taes substancias são: a agua albuminosa, a solução de gomma arabica, as aguas de althéa ou de linhaça e finalmente o leite. 28 Na synthese das considerações expendidas neste capitulo, ficam incluidos todos os conselhos e praticas que mais directa- mente se referem á therapeutica geral dos envenenamentos, pois que o seu assumpto se acha naturalmente confinado pelos limites traçados com o indeterminado do problema medico a resolver. Todas as mais prescripções medicas só podem ser dictadas pelo conhecimento exacto e preciso da substancia toxica que é causa dos males que se procura remediar. Os vários e numerosos conselhos a formular para taes casos especiaes, que como é sabido também se acham subordinados á natureza dos symptomas que exprimem a modalidade clinica, são assumptos de therapeutica especial para cada um dos en- venenamentos. Em vista de sua variabilidade natural que equivalentemente corresponde á especificidade dos venenos, taes prescripções não podem com justeza e precisão ser estudadas em synthese, por cujo motivo e para completar este trabalho vai adiante inscripto um quadro geral de classificação dos venenos, no qual natural- mente se acha incluido um resumo systematico dos principaes recursos therapeuticos, com a especificação de seus effeitos geraes. Finalmente uma synopse das principaes formulas medica- mentosas usadas em therapeutica de venenos põe remate ao estudo em synthese que tal assumpto requer, e a natureza deste trabalho propriamente o exige. 29 Quadro synoptico de classificação dos venenos e dos principaes medicamentos que se lhes podem oppôr x • k ■ Emollientos. Leito em abundancia. l.°—Irritantes, corrosivos (*) 2.° — Hyposthenisantes, Alcoolicos. (Vinho generoso.) [Estimulantes energicos. Fricções Seccas, sinapismos. quentes, excitantes. Revulsivos volantos. 3.° — Estupefacientes. .Os mesmos meios que para os hyposthenisantos o mais antispasmo- dicos, o opio. Banhos do dupla temperatura. Affusões frias sobre a cabeça. iCorrenles continuas. Revulsivos. Ilnfusão forte de café. Solaneas virosas. 4.o_ Narcóticos. 5.o — Nevrosthenicos. iCalmantes, sedativos e antispasmodicos. (Opio, chloral, chloroformio, I bromuretos alcalinos.) Correntes continuas. Synopse systematica da therapeutica geral dos envenenamentos Mecânicos. Titillação do pharynge com o dedo, as.barbas de uma penna, etc. Bomba gastrica ou sonda esophagiana. (Tubo Faucher.) Agua morna om quantidade. Solução de albumina, ou melhor ovo crú. /V omitivos 'Aledicinaes (Ipecacuanha. (Apomorphina. iSulfato do zinco. ,Dito de cobre. Evacuantes. Purgativos. 'Magnesia. (Sulfato de magnesia. (Dito de sodio. Ghlorureto do sodio. [Oleos em geral. (Azeite doce.) ITartaro emetico. Mixtos, .Farinha. Oleos. 'Polvilho. Palliativos mecânicos. 'Albumina e caseina. (Ovo crú, leito.) Agua de sabão. Dita de cinzas. Tannino. (Infusões adstringentes.) |Sulfureto de ferro hydratado. Hydrato de peroxido de ferro. ISulfuretos alcalinos. (Aguas sulfurosas.) Essência do therobeniina. (Para o phosphoro.) Ácidos. (Para os alcalis.) Alcalis. (Para os ácidos.) Solução de iodureto iodurado. (Para os alcaloides.) Contra-venenos e antídotos. (*) Ainda que propriamente os acidas, cáusticos o corrosivos comprohendidos nesta classe não possam ser considerados venenos, pois quo seus effeitos apenas traduzem acções de contacto, até certo ponto analogos ás do vidro, esmalte ou porccllana quando ingeridos em pequenos fragmentos, entretanto aqui são incluidos para não dostoar da pratica seguida pelos bons autores, e mais ainda porque como taes são na clinica medico-forense consideradas muitas dessas substancias. (**) Os differentes grupos de meios thorapeuticos, aconselhados para cada uma das cinco classes de venenos, são em linguagem sciontiflca denominados antagonistas porque combatem os symptomas goraos que assignalam taes envenenamentos. 30 Synopse de vários medicamentos e formulas empregadas contra os envenenamentos Magnesia calcinada Hydrato de peroxydo de ferro Carvão animal em pó aá partes iguaes M.® Administra-se esta mistura ás colheres, diluindo-a em um pouco de agua; repete-se a administração com frequência sem receio de empregal-a em excesso. Com tal mistura, que de si é completa mente innocente, con- seguem-se vários resultados de acção chimica, todos proveitosos. Obtem-se a saturação dos ácidos, decompoem-se os saes metallicos, transforma-se o acido arsenioso e cyanhydrico em compostos insolúveis, e decompoem-se os saes de alcaloides; além de taes effeitos, é purgativa. O proto-sulphureto de ferro hydratado, também chamado antidoto de Mialhe, é considerado de bom emprego contra os envenenamentos produzidos pelos compostos metallicos em geral. Póde ser empregado sob a fórma de xarope e administrado ás colheres. De preferencia ao hydrato de peroxydo de ferro, aconselhado pelo Codigo francez contra o envenenamento pelo acido arsenioso, prescreve a pharmacopéa allemã o celebrado antidoto formulado pelo Collegio de Saude de Brunswik, que consta do seguinte: Sulfato de protoxydo de ferro... 31 partes Agua 31 » Acido sulfurico a 63°. B...... . G » Acido azotico 6 » 31 Aquece-se esta mistura até que tenha cessado completa- mente a producção de vapores rutilantes ; depois de fria, ajunta-se a quantidade de agua precisa para perfazer 62 partes do liquido. Depois de filtrada, o liquido que passa é escuro, um pouco espesso e acido ; é uma solução acida de persulfato de ferro. Para se conjurar o envenenamento pelo acido arsenioso, toma-se da: Solução acida de persulfato de ferro 30 grammas ajunte-se: Agua.. 250 » Magnesia calcinada 12 » E’ esta mistura que se administra aos doentes na dóse de 60 a 120 grammas, de quarto em quarto de hora. Este antídoto, reunindo o hydrato de peroxydo de ferro e a ma- gnesia calcinada que formam com o acido arsenioso compostos insolúveis, ainda dá logar á formação de sulfato de magnesium que tem effeitos purgativos. O antídoto do collegio de Saude de Brunswick póde ser sub- stituído pela solução de sulfato de ferro diluido em 10 vezes de seu peso d’agua, e misturada com a metade em peso de ma- gnesia calcinada. O hydrato gelatinoso de magnesia é também um bom antí- doto do acido arsenioso. Obtem-se dissolvendo uma parte de sulfato de magnesium em 20 partes de agua dislillada ; junta-se ao liquido uma solução de soda cáustico, de densidade 1,075 ; forma-se então um preci- pitado de hydrato de magnesium que é gelatinoso, e que se deve ter o cuidado de lavar com agua distillada. 32 I 0 hydrato de magnesium, diluido em agua e administrado em altas dóses, tem a propriedade de, neutralizando o acido arsenioso, determinar evacuações abundantes; e por esse motivo póde ser preferido ao hydrato de peroxydo de ferro. A mistura denominada antídoto de hydrato ferrico, for- mulada pelo professor Jeannel, preenche grande numero de indicações; póde ser empregada contra o envenenamento pelos ácidos, pelos compostos arsenicaes, saes metallicos de ácidos mineraes, iodo, bromo, alcaloides vegetaes e seus saes. Consiste em uma Solução de sulfato de peroxydo de ferro a 45° Beaumé, que se conserva separadamente, e uma mistura de Magnesia calcinada e carvão animal em agua commum. Na occasião do emprego mistura-se uma solução com a outra; agita-se fortemente o todo, e administra-se na dóse de pequenas chicaras, amiudadas vezes. Contra o envenenamento pelos saes solúveis de antimonio, que são extremamente venenosos, e dos quaes é o melhor typo o tartrato de antimonio e potássio, tartaro stibiado ou tartaro emetico, empregam-se as bebidas adstringentes. Com Tannino 2 grammas Agua commum 100 grammas faz-se promptamente uma dissolução que se administra em duas dóses, com pequeno intervallo de alguns minutos. Em falta do acido tannico — póde-se aconselhar os decoctos de cascas de quina, de nozes de ga.lha, de cascas de carva- lho, de cascas de páo pereira, de cascas de jequitibá, que em poucos minutos se faz ferver com sufficiente quantidade de agua commum. 33 Uma forte decocção de café pôde também ser empregada com vantagem: 30 grammas de pó de café torrado em 100 grammas de agua fervendo produzem bebida já bem adstringente. Contra o envenenamento pelos saes de chumbo, empregam-se os sulfatos solúveis de sodium e de magnesium, pois têm a propriedade de formar uma combinação plumbica insolúvel, que é rejeitada pelas evacuações em virtude da acção pur- gativa destes dous sulfatos. O sesqui-sulfureto de ferro hydratado, preconisado por Bouchardat, não tem a efficacia destes dous saes. A agua albuminosa é para taes casos um verdadeiro antídoto porque dá logar á formação de um albuminato de chumbo insolúvel. O leite é um contra-veneno porque em seu coagulo en- carcera o sal plumbico que, desta fórma, não se põe em con- tacto com a mucosa gastrica, e póde ser rejeitado a favor de um vomitivo que se administre. O envenenamento agudo pelas combinações cúpricas, ainda que varias vezes possa ser levado á conta da natureza do acido que com este metal se combina, como succede com os arsenitos e arseniatos, póde entretanto exigir a intervenção do pratico que, de preferencia, deve empregar agua albuminosa em grande quan- tidade comoo melhor contra-veneno em taes casos. Póde ainda ser preconisado com vantagem o antídoto múl- tiplo de sulfureto de ferro do Dr. Jeannel, ou o hydrato ferrico do mesmo autor. Gomo contra-venenos e antídotos aconselhados para comba- ter o envenenamento agudo produzido pelas preparações mercu- riaes solúveis, figuram diversas substancias que têm quasi todas o mesmo valor e efficacia. 34 A albumina, formando albuminato insolúvel, ébom antídoto, posto que se possa receiar a redissolução do precipitado formado em um excesso de reagente; tal redissolução, entretanto,só se realiza lenta e difficilmente. O leite é ainda bom meio para reter no coagulo o sublimado e os azotatos de mercúrio. O glúten ou as farinhas podem substituir a albumina. As cinzas, administradas em suspensão na agua morna, têm a propriedade de formar — carbonatos de mercúrio insolúveis — que serão rejeitados pelo vomito. As aguas sulfurosas são igualmente aconselhadas, porque o acido sulphydrico e sulfure tos alcalinos precipitam os saes de mercúrio em sulfuretos insolúveis. No envenenamento pelo phosphoro, após o emprego imme- diato de um emeto-cathartico, que é da maior urgência, aconse- lha-se a agua albuminosa, agua de cal, e a magnesia calcinada di- luída em agua, medicamento que apenas tem por flm englobar a matéria toxica, evitando o seu contacto com as superfícies absor- ventes. Tem sido também preconisada com grande vantagem a essencia de therebentina. Depois que tão perigosa substancia tem penetrado por ab- sorpção no trama orgânico, não ha até hoje medicamento algum que inspire confiança. O mais acceitavel, ao menos em theoria, consiste nas inhalações de oxygeno que tem a propriedade de transformar a substancia deleteria em productos oxydados, facilmente eliminados pelas urinas no estado de hypophosphitos, phosphitos e phosphatos. A agua fria ou morna em grande quantidade, tendo em di- luição a magnesia calcinada, é o melhor e mais efficaz agente para combater os phenomenos de irritação local e causticidade que sobre o estomago podem determinar os ácidos sulfurico, azotico, chlorhydrico, oxalico e outros. Por inversão de propriedades, a agua com sumo de limão, a agua com vinagre, a limonada tartarica, são os melhores medi- camentos que se podem empregar para conjurar analogos plieno- menos produzidos pelos alcalis potassa e soda. Contra os envenenamentos pelos alcalis vegetaes, costuma-se administrar indifferentemente vários meios que são contra-ve- nenos, porque precipitam os alcaloides toxicos no estado de com- binações insolúveis. São o tannino, e as diversas cascas adstrin- gentes em que predomina este acido orgânico. Aconselha-se também com proveito o iodureto iodurado de potássio, que tem analogo e Afeito. Nesta synopse indicativa dos principaes contra-venenos e an- tidotos conhecidos e empregados na therapeutica dos envenena- mentos, são exclusivamente apontados os que mais têm entrada na clinica medico-legal. Com este complemento assim resumidamente apresentado, e que já ultrapassa os limites da therapeutica geral, fica con- cluido, mas não esgotado o vasto e importante assumpto desta dissertação que, si em mãos mais hábeis teria maior latitude, não póde todavia ser acoimado como trabalho de levante, porque nelle se concentrou muito esforço, perseverança e boa vontade,